segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A Escola das «evidências»

Que falha evidentemente
Imagem obtida via Google
Há poucos anos a esta parte, a palavra «evidências» passou a ser muito usada nas escolas. Basicamente, de qualquer acção em que os professores e/ou alunos participassem, deviam ser colhidas «evidências», em muitos casos para que os professores pudessem fundamentar os relatórios de «auto-elogio» obrigatórios para mudarem de escalão, fosse no respeitante à bondade do trabalho que realizaram fosse no que se relaciona com o entusiasmo dos alunos e com a qualidade das suas aprendizagens. E então eram fotografias, notas ou textos em jornais, declarações e certificados e o mais que (já) não me lembra. Era um «enjoo», em certas alturas, testemunhar tanto «folclore» e tanta futilidade e pepineira.
Com o congelamento das carreiras, o negócio das acções de formação esfriou e a sanha das «evidências» viveu uma certa alcalmia benfazeja.
Nos tempos que correm, as perspectivas de descongelamento, ainda que lentas, lentas, lentas e a nova onda pedagógica da «cidadania e desenvolvimento» soltaram os ventos da animação: multiplicam-se os «eventos» e as acções de formação (será que um dos objectivos é reanimar as expectativas dos que «desesperavam» com o desinteresse dos professores?) e de tudo é novamente preciso recolher «evidências».
Pensamos com as palavras. E o léxico de cada época reflecte muito do que se faz e, sobretudo, do modo como se pensa (ou não pensa). Como estou a ler o livro «Por Amor à Língua» de Manuel Monteiro, editado pela «Objectiva», detive-me na palavra «evidências» e nessa outra também muito em voga: «eventos».
Evento é, no dizer de M. Monteiro, um «moderninho anglicismo» usado como «saco onde cabe tudo, e de que não se sentia a falta «para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos». Desta benéfica diversidade vocabular, criteriosamente utilizada, resultava «precisão informativa», que hoje não temos. Evento «dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos», para referir mais uns quantos exemplos de M. Monteiro.
O termo ««evidências» é usado com o sentido de «provas» ou «indícios» (evidences)» («utilização do significado de uma palavra do inglês numa palavra portuguesa parecida»). Ora, o significado da palavra evidência, em português, está relacionado com clareza, facilidade de compreensão, visibilidade, exposição aos olhos de todos, salientar-se, chamar a atenção geral, o que pode remeter para exibicionismo, bem ao contrário de discrição, reserva, contenção, recato, modéstia e circunspecção. E destas duas vertentes bem diversas, senão opostas, qual deve ser a predominante em pedagogia, enquanto acção dos professores? Eu não tenho dúvidas em optar pela segunda, pois que, em muitos casos, as qualidades ou procedimentos que pressupõe devem ser a regra de ouro: lidar com problemas do foro íntimo dos alunos, com as suas dificuldades, trabalhar a persistência, a paciência e a resiliência, guardar prudência na relação com os outros, ter moderação nas palavras e nos actos, por exemplo).
Ou seja: é a própria linguagem formal hierárquica que promove um certo «dar nas vistas» devidamente «certificado» e a competição que, consequentemente, daí recorre. Para os professores e, necessariamente, para os alunos. O contrário do que seria desejável. Por outro lado, não é bom caminho limitar a importância ao que é ou parece evidente, em detrimento do que o não é ou não dá essa impressão, porque pode desviar-nos do que é verdadeiramente importante (não é evidente que a Terra é uma esfera que gira em torno de si, contrariando a realidade, como não é ou pode não ser evidente a relação entre a poluição e as modificações do clima). Como diz o povo «as aparências iludem», «nem tudo o que luz é ouro» ou «quem vê caras não vê corações».
Admiramo-nos depois de que tudo funcione tão mal. Como poderia, se nos preocupamos (mais) com o carácter vistoso das «embalagens» do que com a qualidade do «conteúdo»?
E exemplificamos com a pior prática possível.

José Batista d’Ascenção

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