quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Educação, ensino e pedagogia – receitas e sentenças de todos sobre tudo

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Não vai bem a escola pública (do ensino básico e secundário) em Portugal. O mal é profundo, vem de longe e nunca foi prevenido nem atacado a montante. Demasiadas vezes, a classe foi envolvida em lutas que fugiam ao cerne da acção pedagógica fundamental. Lutas que os professores não conduziam e que muitos deles desconheciam e dispensariam, amarradas a frenesins reivindicativos que não podiam ser bem acolhidos pela sociedade e que conduziram ao desprezo pelos docentes.
À origem do mal não escapam as instituições universitárias que diplomaram (os) professores, apetrechando-os com supostas ferramentas pedagógicas cuja fundamentação prática, em muitos casos, foi ausente ou inadequada, ou meramente idealista e teorética, motivo por que baquearam perante a realidade e só artificial e ilusoriamente persistiram no tempo.
A formação contínua de que os professores deviam beneficiar foi contaminada por muitos protagonistas sem a qualidade desejável, realizada mais para efeitos formais do que para enriquecimento efectivo, o que redundou na desilusão de uns, no desprestígio de quase todos e na quase ausência de melhoria real da prática docente.
A definição de um estatuto da carreira docente e a torrente de legislação permanente, desde então, alcandorou uns e terraplanou outros, contemplando todo o tipo de formação, ministrada por quaisquer escolas ditas do ensino superior, e determinando injustiças e falhas no ingresso, na avaliação (indigente), na progressão e no desempenho, em somatório crescente sem resolução até à embrulhada actual.
A profissão docente viria a sofrer interferências de personalidades e entidades diversas, das áreas da sociologia, da psicologia, da psiquiatria e da assistência social e, mais tarde, de supostos especialistas e agentes interessados no apoio à deficiência. Palestras sem conta, alguns livros e muitos artigos de imprensa pretenderam mostrar aos professores como é que eles deviam/devem ser professores. Hoje, essa faculdade alargou-se a qualquer cidadão, incluindo os que têm assento nos conselhos de turma de avaliação dos finais de período lectivo. De um tal «movimento» resultou a desclassificação dos professores, que passaram a uma espécie de funcionários limitados às ordens recebidas, de preferência sem (se) questionarem.
Como os professores eram em grande número e isso impressionava o poder, os políticos/sociólogos modificaram o modo de gestão das escolas públicas, criando assembleias/conselhos sem maioria de professores para escolha das direcções. Formalmente democráticos, estes órgãos, com relevância legal, têm uma prática burocrática tendencialmente anódina (o que pode ser um bem), pelo que, as melhorias, se passaram a existir, não são perceptíveis. E as direcções, em muitas escolas, continuaram com os mesmos líderes, dirigindo da mesma maneira, não sem alguns conflitos estéreis de chefias e facções intra ou entre órgãos com visões divergentes. Nos conselhos pedagógicos, a tendência (de incluir muitos membros além dos professores, alguns sem qualquer capacidade para a função) também se verificou, tendo sido morigerada mais tarde (ao tempo de Nuno Crato). Os benefícios nunca foram visíveis e hoje, o que devia ser um órgão nobre do funcionamento das escolas passou, basicamente, a uma sucessão de reuniões, por vezes excessivamente longas, para ratificação formal das mais variadas irrelevâncias de penosas teias legais.
Além dos alunos na sala de aulas, restam aos professores instituições e pessoas credenciadas que lhes proporcionam apoio e acompanhamento científico e pedagógico, prestados, nalguns casos, por dever cívico militante e não por qualquer estímulo ou reconhecimento formal, de que, de resto, esses verdadeiros formadores não precisam e dispensam.
Compete aos docentes não desaproveitar essa ajuda, tanto quanto devem exigir o direito a ensinar e instruir. A acção educativa fundamental que se deve exigir aos professores radica essencialmente nessas funções, como o sabem os pais que educam os filhos e os levam à escola para ela continuar o que, de outro modo, não seria possível. É também aí que os professores põem em prática o seu nobre exercício de cidadania. Claro que há sempre metodologias diversas, e assim deve ser, pelo que o exemplo e as suas necessárias adaptações são de valorizar, tanto como a (muito) necessária investigação (séria) em pedagogia desenvolvida perante alunos concretos, não enviesadamente seleccionados.
Já não enobrece a profissão docente a própria legislação (é exemplo o artigo 8 do Dec.-lei nº54/2018) quando vai ao ponto de fornecer uma extensa listagem de «acomodações curriculares» (99) distribuídas por categorias (4) que incluem, por exemplo, «fazer revisões utilizando questões semelhantes às dos testes» (medida E17) ou «realizar testes com consulta do livro» (medida E22).
A pedagogia não se faz por receita nem por formulários. Sem professores com sólida formação de raiz e a necessária actualização ao longo da profissão, com autonomia, em observância de leis claramente redigidas e em número não maior que o necessário, não há boa prática pedagógica nem é possível ensinar bem e fazer aprender com qualidade as crianças e os jovens. Escrevi ensinar, pela relevância da palavra. 

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

«Matar alguém»

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A média de idades dos professores do ensino básico e secundário tornou-se, em consequência de vários factores, muito elevada em Portugal. Em acréscimo, e devido às características e condições sócio-educativas dos tempos que correm (modo como educamos as crianças, quadro de valores, relações e protagonismos sociais de jovens e adultos, demissão das instituições, maus exemplos de autarcas, deputados, governantes e políticos em geral, entre outros), os níveis de angústia e sofrimento tornaram-se insuportáveis para muitos docentes, alguns dos quais estão simplesmente destruídos ou à beira disso.
Como resultado (embora não exclusivamente, como é óbvio), há professores com baixa médica há longo tempo. Estes professores acabam naturalmente remetidos para juntas médicas, que estão a mandar muitos deles para as escolas. Se isto deve ser assim para os que reúnem as condições de saúde exigidas, casos há em que não se vislumbra outra vantagem que não a de elevar o rácio de professores em actividade relativamente aos alunos. Na realidade, alguns destes regressos trazem problemas terríveis: um professor incapaz não devia estar na escola: em respeito pelo seu estado de saúde, mas, e sobretudo, como salvaguarda da excelência da acção pedagógica. Ora, existem casos de professores com perturbações profundas que se arrastam nas escolas de braços caídos e «ausentes do mundo». Como é isto possível? É-o entre nós. Ponto. E quais são as consequências? Não me peçam a mim (a redundância é intencional, mas não como «figura de estilo») que as enumere.
Haverá, porém, situações em que as juntas médicas do ministério não obrigam os professores em condições degradadas a voltar às escolas. Seria o caso concreto de uma docente que, em consulta com o seu psiquiatra, lhe terá dito, de modo desabrido: «se volto à escola, mato alguém». E o mesmo terá repetido, desorbitada, aos elementos da junta médica a que foi presente. Não testemunhei, mas parece-me plausível.
E ainda há poucos anos, apesar de tantos sinais preocupantes, não conseguia antecipar um «clima escolar» deste jaez.
Quem mata quem?
Quem vai morrendo é a (ideia de) Escola Pública, que acalento e por que sempre me empenhei, como tantos.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Cidadania e valores


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Professores  (menos modernos?) recomendam aos alunos certas matérias de estudo e consulta e a resolução de exercícios, a realizar extra-aula. São o que em tempos se chamou «deveres» ou (que ainda se chama) «trabalhos para casa» (tpc). Há quem os conteste e quem os defenda, entre os pais/encarregados de educação e (naturalmente) entre os professores.
Um destes dias, certo professor verificava a realização dos tpc. E quedou-se perante um aluno que exibia o trabalho realizado no próprio manual da disciplina, nos espaços entre as perguntas, mantendo o livro aberto sobre o caderno diário de registo dos sumários e apontamentos das aulas, igualmente aberto, pelo que era fácil ver que os tipos de letra manuscrita, num e noutro suporte, eram muito diferentes: redondinha e graficamente harmoniosa, a do livro, e muito irregular e rabiscada, a do caderno. O olhar interrogativo do professor encontrou o do aluno, que não revelava qualquer preocupação. O professor decidiu-se então pelas palavras, referindo que o trabalho realizado no manual [provavelmente emprestado por algum aluno de anos anteriores] e a escrita dos sumários não haviam sido feitos pela mesma pessoa. Sem problemas, e sem virar a cara, o aluno começou por dizer que escreve de formas diferentes em alturas diferentes, mas, face à evidência, rápida e descontraidamente passou a outra justificação: a sua explicadora redigira o trabalho ao mesmo tempo que o ia elucidando a fim de lhe facilitar a compreensão.
O professor pediu então ao aluno que levasse um recado à dita explicadora, dizendo-lhe que ela era incompetente e criminosa e, caso cobrasse dinheiro, que era também uma ladra.
Tais vexames não causaram qualquer perturbação visível no aluno, pelo que o professor optou por maior clareza: não acreditava em nada do que ele dissera ou dissesse naquela circunstância, assim como não podia haver explicadores com tal comportamento, motivos por que a batota tinha sido tentada por outrem, presente na sala, frente ao professor.
E nada.
Aquele jovem continuou mais ou menos imperturbável, afivelando um sorriso de não comprometimento, sem sinal de reconhecimento de incorrecção ou culpa e manifestando disponibilidade para participar na aula: ler textos introdutórios, responder a questões e, até, apagar o quadro, no final.
E o professor registou (mais) este caso de adaptabilidade conformante de um aluno cordato e bem disposto, embora de rendimento trágico.
Valores, ética e cidadania hão-de seguramente continuar a ser prática das pessoas (em maior ou menor número), pelo que não haverá risco de que venham a limitar-se a conceitos irreais grafados nos dicionários.
Porém, o problema é comum, dentro e fora da escola, na política, no desporto, nos negócios e na vida social. Será que tem origem nas escolas e (principalmente) nos professores?
Ou não será?

Nota: O professor em causa foi o escrevinhador destas linhas.

José Batista d’Ascenção