segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A Escola adoeceu, enlouqueceu e envileceu

Os professores que leccionam e que, por isso, lidam directamente com os alunos na sala de aulas, têm, de modo geral, um sentimento de impotência e até de desânimo de que a sociedade e, muito especialmente, o poder político não têm noção. A perplexidade maior talvez possa ser traduzida pela pergunta: para que serve um professor? E, para aqueles que já passaram dos cinquenta anos, que são a larguíssima maioria - a docência envelhece vertiginosamente -, atingir a reforma passou a constituir uma esperança tão desejada quanto longínqua face ao seu estado de espírito e, tantas vezes, de saúde.
Atingiu-se uma situação deplorável em que os males da docência não radicam fundamentalmente nos alunos nem sequer na inadequação dos professores. Mas derivam, isso sim, dos obstáculos que a todo o momento colocam aos docentes e na desvalorização constante de que são alvo. Por excesso de motivos, e para encurtar razões, limito-me a um simples exemplo: Desde há muitas décadas, os professores organizavam-se por grupos disciplinares, que é o modo básico mais válido e profícuo de trabalharem. E o conselho pedagógico era basicamente constituído por representantes dos grupos disciplinares, eleitos pelos colegas. Porque se disseminou a ideia de que os conselhos pedagógicos haviam cristalizado em perspectivas restritas ao corporativismo dos professores foi a sua composição alargada, passando a integrar alunos, funcionários, administrativos e encarregados de educação, entre outros, caindo-se no absurdo de a responsabilidade da pedagogia ficar aos ombros dos professores, mas impedindo-os de, maioritariamente, a poderem definir… Surgiriam então os departamentos – agrupamentos de grupos disciplinares – com um representante em conselho pedagógico. Nada se ganhou com isso, os departamentos são organismos artificiais que, frequentemente, quando reúnem conjuntamente, não têm espaços onde caibam e operam difícil e deficientemente porque o trabalho concreto e específico raramente se aplica à totalidade ou até à maior parte dos docentes de um mesmo departamento. Como os resultados não melhoraram e as hierarquias acham sempre que devem introduzir mais e mais alterações, decidiu-se que era preciso pegar nos departamentos e agrupá-los em «áreas de docência», com o respectivo coordenador. Por tais razões, onde antes havia um regulamento de grupo disciplinar, há agora também regulamentos para o departamento e para a área de docência. E se antes havia reuniões de grupo, há agora, também, de departamento e de área de docência. E actas, de cada uma dessas reuniões. E relatórios. E planos. E projectos. Etc. Repetindo o mesmo vezes sem conta, sem alma, sem moderação e sem inteligência. Para nada. Até ao próximo acrescento de complexidade, com resultados idênticos (na realidade, piores).
E de inutilidade em inutilidade vamos desgastando os professores que se vêem obrigados a ficar de baixa com atestado médico.
Neste contexto, o perfil do aluno após a escolaridade obrigatória surge como mais um documento prenhe de generalidades com que quase todos concordarão, mas que não traz nada de novo. E que chega a recorrer a frases repletas de banalidade [«A melhor educação é a que se desenvolve como construtora de postura no mundo.» (página 8)] ou, de alguma forma, discutíveis [«Os valores não são o resultado de uma compreensão, e ainda menos de uma compreensão passiva de informações, nem de atitudes apreendidas, sem significado para o próprio sujeito.» (página 11)]. 
Importante era resolver os problemas que impedem que os objectivos do dito perfil (agora diz-se competências) possam ser atingidos. Dito de outro modo, aquele documento só teria alguma importância se os professores pudessem fazer o óbvio: ensinar os alunos.  

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

HÁ MONTANHAS E MONTANHAS

Lição sobre montanhas: texto generosamente cedido pelo Professor Galopim de Carvalho, que se agradece e publica.

Em linguagem popular, toda a gente sabe que uma montanha é um monte grande, mas ninguém é capaz de dizer onde acaba o monte e começa a montanha. Tal acontece, porque a palavra, vinda do latim “montanea”, entrou na linguagem popular com a indefinição que a caracteriza e, embora não tendo a especificação exigível no léxico científico, entrou no vocabulário geológico. Situações idênticas são as que podemos exemplificar com os conceitos de rio e ribeiro ou de calhau e seixo. 
Para o alentejano, com excepção da Serra de S. Mamede, com os seus 1025m de altitude, na vizinhança de Portalegre, a grande maioria dos relevos corresponde a elevações muito modestas quando comparadas com as do Centro e Norte do País. Porém, para o homem que escalou a pé todos estes relevos, na luta que travou pela sobrevivência, quaisquer colinas com cem metros de desnível lhe mereciam o nome de serras. Não obstante a ideia generalizada de “planície alentejana”, para os rurais meus conterrâneos “o que não falta aqui são serras”. Basta consultar a toponímia da que é a mais extensa província de Portugal, para verificar que, além daquelas de que falam os manuais de ensino (Ossa, Grândola, Cercal e Portel) há muitas mais, só conhecidas pelos residentes.
Para o comum dos cidadãos e limitando-nos a alguns exemplos nacionais: o vulcão do Pico, a serra da Estrela, a de S. Mamede e a da Arrábida são montanhas, porque, por assim dizer, são grandes montes.
Na linguagem geológica o vulcão do Pico não é uma montanha, pois cresceu por acumulação de lavas, cinzas e outros piroclastos, derramados e projectados pela respectiva cratera. 
A serra da Estrela corresponde, “grosso modo”, a um bloco de terreno que subiu, ao longo de falhas, à semelhança de uma tecla de piano que se eleva acima das outras. A geologia não dispõe de nome em português para designar este tipo de relevos. Utiliza desde sempre o termo alemão “Horst”.
Para o geólogo só a serra da Arrábida é uma montanha, no sentido orogénico (do grego: “orós”, montanha, e “genesis”, origem, nascimento) da palavra.
Para explicar a formação de uma montanha neste último contexto, vamos imaginar uma série de lençóis, mantas de diversas qualidades e espessuras, cobertores, um édredon e o mais que se quiser, tudo bem esticadinho e empilhado em cima da cama. 
Imaginemos que este empilhamento representa alguns quilómetros de espessura de camadas de sedimentos depositados no fundo de um oceano, ao longo de cem ou mais milhões de anos, como é, por exemplo, o que está a acontecer no Oceano Atlântico, aqui ao nosso lado. 
Vamos agora abrir bem os braços e agarrar esta pilha de roupa, uma mão de cada lado, e apertá-la para o meio da cama. Fica tudo amarrotado, com dobras para cima e outras para baixo. 
Com a força dos nossos braços, em metro e meio de extensão desta roupa e em um ou dois segundos, fazemos, assim, o que a Terra faz, com todas as forças do enorme brasido do seu interior, em milhares de quilómetros de fundo de um oceano e ao fim desses muitos milhões de anos. 
- Então uma montanha são rochas sedimentares dobradas?.
A esta pergunta a resposta é:
- Sim, mas é mais do que isso. 
A porção das dobras que fica para cima representa a parte da cadeia montanha que se eleva à superfície do terreno, como aconteceu na Arrábida e está a acontecer nos Alpes, por exemplo. A porção dobrada que fica para baixo representa a parte que se afunda na crosta terrestre, como se fosse a sua raiz. Acontece ainda que, em virtude das elevadas pressões e temperaturas a que passam a estar sujeitas, as rochas sedimentares que assim se afundam na crosta, se transformam em rochas metamórficas. Na parte mais profunda destas raízes, com temperaturas na ordem dos 800 a 900 ºC, as rochas começam a fundir, gerando magmas que, arrefecendo ao longo de milhões e milhões de anos, se transformam em rochas magmáticas como os granitos e outras menos conhecidas.
A serra de S. Mamede é o que resta de uma enorme cadeia de montanhas, verdadeiramente orogénica, que teve aqui, na Península Ibérica, há mais de 300 milhões de anos, tanta ou mais imponência do que os Alpes, mas que hoje se apresenta, em grande parte, arrasada pela erosão.

A. M. Galopim de Carvalho

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Educação: retorno ao que se revelou dispensável, ignorando os problemas que ninguém quer ver?

Tempos de formação cívica, sim. Compete à escola, que devia ter o prestígio, a autoridade, as condições e os meios, ensinar às crianças (e exigir-lhes) as regras que é necessário que elas aprendam (também) na escola. Porém, a educação começa em casa (ainda no berço) e ninguém espere da escola o milagre da alteração de comportamentos que estão de tal modo enraizados no proceder de certas crianças e jovens que escapam à esfera da eficácia possível nos estabelecimentos escolares. Exemplos simples: há meninos que chegam sistematicamente atrasados às aulas de início de turno porque são trazidos de automóvel pelo pai ou pela mãe, ou que usam o telemóvel na aula porque o pai ou a mãe os estão a contactar por essa via.
Já não digo o mesmo do que decidiram chamar “área de projecto”, área não disciplinar que foi extensiva ao ensino secundário, durante anos, na sequência de outra ideia a que tinham posto o nome de “área-escola”, e que não deu frutos efectivos que a recomendem. Há quem diga que sim, mas não é o que eu posso testemunhar. Sou sim testemunha de várias situações indesejáveis, embora como interveniente marginal, que vivi de perto. Num caso, tive que votar pela manutenção da nota de uma distinta professora de C. Física e Química (Julita Capelo, de seu nome) na classificação de uma extraordinária maquete que incluía um aerogerador funcional, executado à escala, mas em que a professora nunca conseguiu ver os alunos a trabalhar, mesmo quando os procurou na morada que eles lhe indicaram, por mais que uma vez, dado que a peça era demasiado grande para ser levada para a sala de aula. Fez valimento a posição da professora, quer no conselho de turma quer no conselho pedagógico, ao qual eu pertencia. Noutro caso, também no conselho pedagógico, tive que votar pela manutenção das “notas” de mais de metade dos alunos de uma mesma turma (dezoito!), que pretendiam classificações desajustadas, fruto de uma certa ideia de que aquela área não disciplinar devia ser contemplada com valorações a roçar o topo da escala. Não andei diferente do colectivo e a pretensão não foi contemplada. Mas calhou-me redigir a acta, em tempo muito curto, para se fazer seguir as fundamentações para os senhores encarregados de educação. O conselho pedagógico teve que se fazer em duas longas sessões, em dias diferentes (porque um só não chegava…), e então escrevi, escrevi dezenas de páginas. Como o documento tinha que ser lido perante todos, lá o fiz com a pressa que pude, num tempo que reduzi a cinquenta e cinco minutos, segundo cronometragem revelada no momento por um colega do conselho. Num outro caso, ainda mais indesejável, porque a (minha) colega professora deu liberdade aos meninos para contactarem com personalidades ou instituições exteriores à escola, como devia, calhou que um grupo de alunos se viu envolvido com uma suposta personalidade que acabou a pedir e a receber dinheiro dos elementos da turma. Perante a incredulidade da professora, que lhe pediu satisfações, acabaria a docente acusada (pela própria infractora) em tribunal e o caso foi a julgamento. Acabou absolvida, como não podia deixar de ter sido, mas, se a mim me custou ir depor como testemunha, mais me custou toda a situação e o sofrimento da colega, que ela não merecia e de que devia estar preservada.
Esta “área não disciplinar” tinha umas normas tão curiosas que, embora sem qualquer programa que a definisse, admitia que os alunos fossem a exame. Que eu saiba nunca nenhum foi, em escola alguma do país. Não sei que tipo de prova se poderia fazer e muito menos como se deveria ou poderia classificar…
Face ao que escrevi, os alunos não se devem envolver em projectos de âmbito escolar? Claro que devem, mas em matérias ancoradas nos conteúdos das diversas disciplinas, para ampliarem os seus conhecimentos e os relacionarem com os das áreas mais diversas… Projectos no vazio é que não.
De resto, as escolas públicas envolvem-se em projectos e procuram a interdisciplinaridade possível, preparando bem os alunos nesse âmbito, como o reconhecem estudos feitos por universidades tão conceituadas como a Universidade do Porto.
Medidas desejáveis que parecem liminarmente afastadas do horizonte são, por exemplo, a extinção dos mega-agrupamentos, a obrigatoriedade de as aulas, excepto as práticas, não poderem prolongar-se por mais de cinquenta minutos seguidos sem fazer intervalos de dez, ou a reversão das horas mortas que os professores são obrigados a passar inutilmente nas escolas, ou a frequência obrigatória de reuniões para discutir coisa nenhuma ou pior que isso…
E os professores vão definhando, dia-a-dia, no ânimo e na saúde, em escala progressiva. Com que objectivo?

José Batista d’Ascenção

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Avaliação de professores

«O tema da avaliação dos professores acabou em Portugal. Quem o diz é a ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, que, precisamente, fez da avaliação de professores o seu cavalo-de-batalha», pode ler-se em artigo de Clara Viana, na página 14 do jornal «Público» de hoje.
E mais adiante, especifica-se: ...«Maria de Lurdes Rodrigues [...] assumiu [...] que o final do seu mandato mostrou que “não existem condições objectivas” para introduzir a avaliação docente.»
E ainda: «Sendo a avaliação um “tabu, é nosso dever arranjar outros instrumentos que permitam alcançar os mesmos objectivos — melhorar o recrutamento e as competências — sem os confrontos e as crispações a que assistimos”, disse a ex-governante.»

Tarde o reconheceu. É caso para dizer que tão incompetente foi no tempo que tardou na admissão pública desse reconhecimento, quanto o foi no exercício do cargo. No que esteve «bem» acompanhada pelos restantes ex-ministros da pasta, que continuam, prodigamente, a pronunciar-se e a dar «soluções» que nunca souberam concretizar no tempo em que o deviam ter feito.
Não merecem absolvição, nem dos alunos, nem dos professores, nem da comunidade, nem da História, em cujos rodapés não figurarão por bons motivos.

José Batista d'Ascenção

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

CONTRA O INSUCESSO ESCOLAR

[Lição de Pedagogia e de Dever Cívico, pelo Professor Galopim de Carvalho. Aqui se publica com sentimento de profunda gratidão]

Terminada a licenciatura, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica para o ensino, comecei imediatamente a leccionar, como segundo assistente, em aulas práticas. Nos últimos anos de uma cristalografia essencialmente morfológica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que, não tendo sido esse o ramo da geologia em que me orientei, guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. 
Os tempos eram outros e os jovens assistentes no departamento de Geologia da Faculdade de Ciências Lisboa, nos anos 60 e 70 do século que passou, eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, éramos conduzidos a uma visão eclética da ciência que dava o nome ao departamento.
Um tal ecletismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. Como hoje, a par da investigação científica, os docentes universitários da minha geração criavam a sua própria pedagogia. Definiam os conteúdos das suas cadeiras, regiam-nas a seu modo e, no final do ano, examinavam os seus próprios alunos. 
Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, interiorizada em adolescente, que era fundamental levar os alunos a encontrarem beleza nas matérias das disciplinas a meu cargo. Nesse sentido, desenvolvi um discurso que fui melhorando com a experiência e com o tempo que pude constatar que resultou e deu frutos. Quem ler os comentários de retorno relativamente aos textos, em moldes de lições escritas, que diariamente publico na minha página do Facebook, sabe que assim é.
Foi no convívio com um grupo de amigos eborenses, ligeiramente mais velhos do que eu, que “aprendi a gostar de saber”. Invulgarmente curiosos em muitas áreas do conhecimento, o Mário Ruivo, o Lima de Freitas, o Marcolino Galhardo Gramacho, o Júlio Roberto, o Henrique Leonor Pina e os irmãos David e Fernando Bragança Gil, todos eles figuras destacadas na nossa vida científica e cultural, iniciaram-me nesse gosto de saber. Com eles aprendi que havia beleza em todas as matérias integradas nos nossos programas escolares, mesmo naquelas que os alunos menos motivados achavam desinteressantes.
As outras chaves, que a experiência me ensinou, são a estimulação da autoestima e a consciência do dever cívico de estudar. Fundamental no binómio ensino/aprendizagem, compete aos educadores e aos professores conduzirem os alunos nesses três sentidos. Quaisquer que sejam as matérias em causa ou os níveis de escolaridade e etários dos alunos, estas chaves fazem deles alguém que tem gosto em aprender, que frequenta as aulas com prazer, encara o estudo como uma condição de cidadania, respeita a escola e se respeita a si próprio. Para tal, o docente tem de conseguir estabelecer com o discente uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que, a par do cumprimento do programa escolar, lhe permita actuar com êxito nestas três vertentes. 
Reportando-me à minha experiência de quarenta anos no ensino universitário, onde, por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre se mostrou eficaz. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável a presença na sala de aula e o convívio comigo. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração. O resultado deste procedimento era, quase sempre, ganharem gosto pelas matérias (que são sempre bonitas para quem as conhece), pelo seu estudo e, sobretudo, a já referida autoestima.
Julgo ser possível alargar esta experiência ao Ensino Secundário. No que diz respeito ao Ensino Básico, com turmas superlotadas, esta experiência suscita problemas sobre os quais gostaria de dialogar com os respectivos professores.
 “O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Trata-se aqui de um dito que, na nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de que só o conhecimento nos defende na sociedade que estamos a viver. 
É esta realidade que os professores devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos mais desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades desenvolvimentistas. É esta realidade que o professor tem de transmitir aos que o ouvem e leem. O Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. E nestes outros estão os do trabalho precário, os marginais e a maioria dos sem-abrigo. É uma obrigação dos professores transmitir aos seus alunos esta mensagem, na batalha contra o insucesso escolar. Eles, os alunos, não sabem que estão a consentir serem vítimas de uma segregação a prazo, conhecida e promovida pelo Sistema, e é necessário que alguém lhes abra os olhos. E esse alguém, à falta da acção dos pais, tem de ser o professor. Não é fácil, mas não é impossível esta tarefa. Há que saber ganhar a confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que gosta da convivência com o seu professor e duplamente feliz se esse professor estiver à altura do seu papel que, para além de educacional, é, também e sobretudo, social.

A. M. Galopim de Carvalho.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

No laboratório, com alunos interessados

Esta manhã fiz a primeira aula prática de microscopia com os meus alunos da turma E do 10º ano de escolaridade. Esta aula foi muito mais agradável do que outra idêntica de colegas seus de uma turma diferente na passada quinta-feira, porque os alunos dedicaram mais atenção ao protocolo, ouviram com interesse as recomendações do professor e empenharam-se cuidadosamente na realização das preparações para observação ao microscópio. E tão bem trabalharam, sobretudo os do primeiro turno, que tudo decorria serenamente, com as dúvidas satisfeitas sem quaisquer atropelos, com todos os grupos a obterem boas imagens que, com recurso aos telemóveis, vários deles fotografaram. Houve mesmo quem fizesse pequenos filmes sobre micróbios em movimento (protozoários de uma infusão de palha seca em água, após vários dias). E quando tocou para o primeiro intervalo, foi preciso lembrar-lhes uma e outra vez que já tinha tocado, que era preciso ir lá fora…
Trata-se de alunos meigos, cordatos, simples e simpáticos. O meu problema nesta turma é que há um grupo de alunos (uma meia dúzia…) em que o rendimento é bastante baixo e, passado meio ano lectivo, ainda não consegui “alavancar-lhes”, como agora se diz noutras áreas, a compreensão de muitos aspectos da matéria que é preciso que eles aprendam. Isto causa-me sério desconforto. Mas não posso, não devo, nem quero, desistir deles. Tomara eu que outros, com muito melhor facilidade de aprendizagem (pelo menos até agora…) fossem as pessoas sãs que estes são.
Com carinho fiz este registo.
Já agora, registo também que fui para a aula desagradado com os resíduos de lixo e aglomerados de cotão nos cantos das escadas e corredores. Como houve greve de funcionários na sexta-feira passada, a limpeza não foi feita, como era suposto. Mas, à hora da saída, uns quantos minutos depois, os necessários para eu arrumar o material, já estava tudo limpinho. O pessoal auxiliar trabalhou discreta e silenciosamente durante as aulas (só pode ter sido), e pôs tudo como devia ser. Do corpo lhes saiu, mas ainda bem.
Enfim, às 13.30 h, mais ou menos, saí satisfeito da escola, depois de uma manhã cheia de aulas (com início às 08.20 h), em que cheguei à sala 10 minutos mais cedo para preparar o material. E o curioso é que na sala anexa, ainda antes de mim, já lá estava a minha colega Guiomar, por motivos idênticos.
Valeu a pena.

José Batista d’Ascenção

domingo, 5 de fevereiro de 2017

ARGILAS E ARGILAS (lição condensada sobre o tema, do Professor Galopim de Carvalho, que aqui se publica e agradece)

Na linguagem dos geólogos que, como eu, se envolveram mais intensamente com os sedimentos e as rochas sedimentares, o termo “argila” (do grego argilós, a partir do étimo argos que significa branco, tendo chegado até nós através do latim argila) ocorre geralmente em três contextos diferentes. 

(1) - Espécie mineral (silicato hidratado de alumínio e/ou magnésio, do grupo dos filossilicatos) que podemos especificar usando o termo “argilomineral” como, por exemplo, a caulinite, a ilite, a montmorilonite, a palygorskite e outras. Componente essencial dos argilitos, dos xistos argilosos e das margas, faz parte do cimento dos arenitos ditos argilosos; é essencial na composição mineral dos solos e na dos produtos de alteração das rochas, como são o saibro ou arena e a terra rossa. As partículas cristalinas dos argilominerais são extremamente pequenas, no geral, inferiores a 0,004 mm, só visíveis ao microscópio electrónico. Quando puros, os argilominerais são brancos.

(2) - Sinónimo de “argilito”, nome de rocha sedimentar argilosa que, além de argilominerais, contém quase sempre partículas muito finas de outros minerais (geralmente quartzo associado a quantidades menores ou vestigiais de mica e feldspato), pulverizados durante o transporte entre o local de origem e o de deposição ou sedimentação. 
O argilito é um material coerente, quando seco, friável e facilmente riscado pela unha e plástico quando humedecido, tornando-se moldável. Desagrega-se em excesso de água, formando suspensões (barbotinas) cuja estabilidade depende das dimensões das partículas e das características físico-químicas do meio. Endurece pela secagem e consolida por acção do fogo, características que determinaram o seu uso em cerâmica, em todas as latitudes e ao longo de todos os tempos.
A expressão “argila comum” é usada para referir a matéria-prima da cerâmica industrial do barro vermelho (telhas, tijolos) e na loiça de barro artesanal. Nesta expressão, o qualificativo “comum” marca a diferença com outras matérias-primas argilosas, como são o caulino, a bentonite e a argila refractária.
“Barro” ou argilito impuro é o termo popular dado a esta argila comum. Neste contexto, entende-se por impurezas os detritos, mais ou menos finos, de quartzo, feldspato, micas, óxidos e hidróxidos ferro e, ainda, matéria orgânica, que lhe conferem colorações respectivamente, avermelhada (hematite), amarelo acastanhada (goethite) e castanha escura a negra (húmus). O termo tem origem no latim hispânico barrum, e é equivalente ou próximo de outros como greda e mataca.
Na indústria extractiva, caulino é o nome dado ao argilito branco, essencialmente constituído por caulinite, praticamente destituído de óxidos de ferro, o que lhe permite permanecer branco após cozedura e ser usado como matéria-prima no fabrico de porcelanas. Conhecido e utilizado na China, desde a Antiguidade, o seu nome provém de Kao Ling, que significa montanha alta. Os ingleses chamam-lhe China clay, numa alusão nítida à importância desta matéria-prima no país do Sol Nascente.

(3) - Classe granulométrica usada na classificação dos sedimentos terrígenos de diâmetro inferior a 0,004 mm. É nesta medida que, via de regra, esta componente detrítica acompanha os argilominerais formando com eles os argilitos. Tal acontece por razões de hidrodinamismo. Em resultado da alteração e erosão das rochas em terra, nas regiões onde a chuva é um dos factores dominantes (de climas temperados-húmidos e quentes-húmidos), os materiais resultantes dessa erosão (calhaus, areias e argilas) são arrastados, pela escorrência, para os cursos de água que os transportam muitas vezes até ao mar. Os calhaus vão rolando no fundo, as areias saltitando e as argilas, lado a lado com o quartzo e outros minerais pulverizados, permanecem em suspensão. À medida que os cursos de água vão perdendo força (capacidade de transporte ou competência) os calhaus vão ficando pelo caminho, as areias conseguem ir mais longe e as argilas, bem como as ditas partículas muito finas, avançam ainda para muito mais longe, acabando por se depositar conjuntamente.

Na sistemática de Avicena (980-1037), a argila, no sentido de argilito, era classificada entre as terras, ao lado de outras classes (pedras, sais, metais, minerais fusíveis). Este critério manteve-se até finais do século XVIII, estando bem exemplificado na sistemática de Bergman (1735-1884). É com base nesta classificação obsoleta que os ingleses a designam por earth (e os franceses por terre) e que nós ainda usamos o termo terra, com o significado de argila, em expressões como terra rossa, terracota, terra sigilata, terra fulónica, etc.. 


Notas:

Alteração deutérica – ou hipogénica, é a alteração ocorrente no interior da crosta, exercida sobre os minerais das rochas, por acção de: 1) águas magmáticas residuais muito quentes (hidrotermais), dos vapores e dos voláteis associados; 2) águas residuais do metamorfismo regional; 3) águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. O qualificativo deutérico (do grego deuterós, ulterior, secundário) alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. É exemplo deste tipo de alteração, a caulinização.

Argila refractária – Argila usada no fabrico de tijolos e outras cerâmicas resistentes ao calor.

A. M. Galopim de Carvalho

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Hoje, escolas com aulas e escolas sem aulas

A escola em que presto trabalho (em “regime de dedicação exclusiva”) debate-se, como muitas outras, com falta de funcionários. Desde há uma dúzia de anos, cada funcionário que se aposentou ou que faleceu - e alguns morreram relativamente novos - não foi substituído. E os que, connosco, vieram trabalhar temporariamente tiveram de sair quando já estavam entrosados e eram maximamente úteis. Bem sabemos que o estado da economia do país é anémico e que a dívida pública tem dimensões gigantescas relativamente à nossa produtividade. Assim mesmo, sectores como a educação, a saúde e a justiça (se funcionasse) deviam ser objecto de grande atenção, pela importância que não podem deixar de ter em qualquer país que se queira minimamente organizado e capaz de projectar o futuro. Até porque não faltam sectores onde o rigor dos cortes podia ter sido mais efectivo, a começar pela diminuição do número de deputados – não acredito que a ciência política e a matemática não consigam boa proporcionalidade com um número significativamente menor de representantes dos partidos, digo, do povo, ainda para mais quando muitos deles votam segundo as ordens que recebem - e pelas despesas que se fazem na assembleia da república, nos gabinetes dos governos e das autarquias e com os gestores de instituições e empresas públicas. E não aceito que me venham com as lérias do populismo e da demagogia. Basta ver o tipo e a abundância de carros em que tantas “excelências” se fazem passear, digo, transportar…
Voltando à escola, hoje: na minha estavam ao serviço, segundo ouvi, pouco mais de meia dúzia de funcionários, cerca de um terço do total. Assim, mesmo, porque os nossos alunos são quase todos do ensino secundário, as aulas foram correndo, embora com muitas limitações na circulação dos alunos, na vigilância dos espaços, nos serviços de reprografia/papelaria, bar e assistência aos professores, sobretudo nas aulas laboratoriais… Mas as duas escolas mais próximas da minha, ambas com ensino básico até ao nono ano, não tiveram outro remédio senão fechar.
E como fica triste e pouco operativa uma escola sem os funcionários suficientes… Não falando nos riscos que se correm, particularmente com alunos mais novos ou mais desprotegidos.
A luta dos funcionários das escolas justifica-se. Ainda por cima ganham tão pouco!

José Batista d’Ascenção