sexta-feira, 30 de junho de 2023

Inflação de “notas” e correlativos [texto publicado hoje no jornal «Público»]

Qualquer análise das classificações dos alunos do ensino secundário, púbico e privado, particularmente nas disciplinas sem exame, faz ressaltar tamanha abundância de dezanoves e vintes que devia fazer soar os alarmes da decência e da prudência.

As razões são múltiplas, facílimas de evidenciar, mas difíceis de assumir e, sobretudo, de resolver. Se eu soubesse ser cauteloso não escrevia isto, mas não posso deixar de o fazer.

Os negócios relacionados com o ensino, que os famosos «rankings» estimulam, da atracção de alunos à venda de explicações (sempre justas se são boas, digo eu, que nunca cobrei nada por nenhuma), encerram os factores principais.

Mas não só. Como escasseiam horas para professores, alguns cedem à tentação das boas “notas”, particularmente nas disciplinas opcionais sem exame, como chamariz de alunos para as suas disciplinas e factor de preenchimento dos seus horários. Assim, não são poucos os alunos que fazem opções a pensar em médias em detrimento de conteúdos disciplinares.

No meio disto, muitos pais abrem os cordões à bolsa e/ou apertam o cinto e pressionam os professores, directa ou indirectamente, para atribuírem classificações altas. E os próprios alunos o fazem, não raro sem qualquer pudor. Descendentes e progenitores também ameaçam com reclamações, que sempre se traduzem em castigo burocrático para os docentes, mesmo que falhem o objectivo principal.

Outro efeito colateral é o recurso aos copianços, que os meios tecnológicos tornaram quase impossíveis de combater. E que alunos e muitos pais passaram a considerar não uma fraude, mas um “direito”.

É preciso assumir o descalabro, e tomar medidas legais e pedagógicas que lhe ponham cobro.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Algo bom no final do ano lectivo

Este ano, porque leccionei a 10º e a 12º anos, não tinha alunos para o exame de biologia e geologia, excepto os que, querendo repetir a prova, me pediram para lhes dar algum apoio, o que fiz graciosamente, na escola, ao longo do 3º período.

No dia 26 de Junho apresentei-me para recolher um lote de exames, na função costumária de classificador. A prova deste ano e desta fase respeita o que é habitual (e possível…) fazer-se nas aulas, apesar de os documentos fundamentais – dois fascículos de 12 e 11 páginas com o que se chama «aprendizagens essenciais», de 10º e 11º anos, respectivamente – serem de uma vacuidade limitadora, sem que haja programa específico desses ou de quaisquer outros anos!

Andaram bem os feitores das provas (terá sido uma equipa nova?), face às condições do tempo de pandemia e apesar de um certo desprezo e falta de gosto pelo saber, agora muito em voga, desconformes, porém, com “notas” altas mais ou menos irreais, que alastram avassaladoramente nas escolas, sob pressões diversas, incluindo ameaças de reclamação de alunos e encarregados de educação junto dos professores.

Pela minha parte, nunca me conformei com o despautério de certas questões dos exames de biologia e geologia desde 2006, e assumi-o por escrito, com a devida assinatura. E sou a favor dos exames. Porventura, a sua realização é necessária (também) nas disciplinas do ensino secundário em que não existem, por motivos de decoro, de imprescindível desinflação das classificações e de recredibilização da escola.

Relativamente às provas desta 1ª fase, discordo que se atribua a mesma cotação a todas as perguntas, mais fáceis ou mais difíceis, de opção ou de elaboração de resposta aberta. Claro que há largos trechos de matéria que ficaram de fora, mas compreende-se. E os critérios de avaliação das respostas abertas continuam a não ser tão objectivos como seria desejável, mas também se aceita…

Portanto, a prova está bem assim. Já era tempo. Os responsáveis do IAVE não são, pois, necessariamente alheios à realidade das escolas, ainda que a coerência e a comparabilidade dos exames, ao longo dos anos, sejam bastante duvidosas.

Embora me pareça que estes motivos não são preocupação de muita gente, são, contudo, razões de congratulação.

Que registo.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 27 de junho de 2023

Atribulações do final do ano lectivo (II)

Na manhã do dia 20 de Junho, eu e a minha serena e diligente colega Sandrine estivemos a vigiar o exame de geografia A do ensino secundário.

Na sala, apenas três examinandos. No início, em voz clara, doce e pausada, a Sandrine leu as instruções necessárias e convenientes.

Poucos minutos decorridos, um dos alunos, um latagão de barbicha, punha o braço no ar. E, acto contínuo, pedia aos professores um lenço de mão. A Sandrine procurou a sua (dela) bolsa, na secretária, olhando-me com ar interrogativo. Eu, apenas mexendo os lábios, disse(-lhe) que, por mim, não dava. E ela optou por não dar.

[Este desplante, que se tornou vulgar nas aulas, já vinha de antes, mas acentuou-se durante a pandemia. Sempre o combati: fazia sentir aos alunos que os toalhetes sobre a secretária se destinavam à desinfecção das mesas e deviam ser consumidos com parcimónia, evitando o desperdício injustificado e excessivo, e apelando a que cada um, salvo casos excepcionais, cuidasse da higiene de mãos e face a expensas próprias e do modo mais silencioso possível, reduzindo manipulações e trocas de material mais ou menos conspurcado (com vírus, bactérias, protozoários, fungos). Com sucesso, diga-se.]

Aquele mesmo rapaz, minutos depois, põe o exame de lado e deita-se sobre o tampo da mesa. Ninguém o incomodou.

Minutos mais tarde, outro dos examinandos chama a Sandrine para lhe apontar uma questão que, dizia ele, “era estúpida”. A Sandrine respondeu-lhe com um encolher de ombros que pretendia esclarecedor.

“Acorda” o examinando que se "deitara", volvidos mais alguns minutos, e pergunta à Sandrine se pode sair. Espantada, ela diz-lhe que não (repetindo o que havia dito antes de a prova começar…). E ele pergunta-lhe porquê. E a Sandrine explica-lhe, em tom baixo e muito resumidamente, que não pode. O rapaz volta a deitar-se sobre a mesa.

Pouco sossegado, o outro aluno, chama-me agora a mim, que me dirijo para a sua mesa, e lá está ele com o dedo apontado para a prova: «esta pergunta é estúpida». Dou meia volta, vou buscar a folha das «normas», coloco-me diante dele e aponto para o parágrafo a negro carregado, onde se diz que os vigilantes não podem fornecer quaisquer indicações aos alunos em prova. Ele olha para o meu indicador, depois para mim, e parece acatar.

Puro engano, poucos minutos depois, à passagem da Sandrine, junto de si, dispara outra vez: «esta pergunta é estúpida». Ela não lhe responde.

A 15 minutos do termo do tempo regulamentar, o “dorminhoco” põe o dedo no ar porque precisa de ir ao wc. Chama-se um elemento do secretariado para o acompanhar.

O terceiro aluno faz o seu exame, aplicado e em silêncio.

Antes do toque de saída, relembra-se que há 30 minutos de tolerância, que tem que ser usada até ao fim pelos que optem por beneficiar dela.

O aluno silenciosamente aplicado e o que não fez nada entregam as suas folhas de prova e saem. O segundo atira o enunciado para o balde do lixo.

O examinando sonoramente dubitativo opta por usar o tempo de tolerância.

Passados 10 minutos, este aluno diz que terminou e pede para sair. É-lhe dito que tem que esperar até ao fim. Esgotada aquela meia hora, o aluno entrega a sua prova, levanta-se, atira o enunciado para o lixo e sai.

Foi assim, aquela manhã de vigilância.

José Batista d’Ascenção

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Atribulações do final do ano lectivo (I)

Em teste que apliquei em 02 de Junho numa das minhas turmas (10º ano) verifiquei a ocorrência de fraude, em escala, digamos, entre um turno e o seguinte de aulas desdobradas, como nunca me tinha acontecido. Devolvi as provas aos meninos sem apor qualquer classificação e pedi-lhes que esclarecessem os pais sobre o ocorrido, porquanto eram conhecedores dos detalhes que a mim, falho de vocação de polícia/detective, me escapavam. Quanto à avaliação aplicar-se-ia o previsto nos critérios em vigor para casos que tais.

Vários pais (mães, concretamente) entraram em polvorosa. Sugeri à directora de turma que os deixasse ferver à vontade. Pela minha parte, não ia entrar, nem entrei, em nenhum pingue-pongue via correio electrónico ou outro sobre o assunto. Nem queria ficar a par da chuva de comunicações que podia cair-lhe em cima, como caiu, sem deixar de apoiá-la quanto pudesse. Assim mesmo ainda fiquei a saber que uma mãe lhe enviou uma comunicação lapidar: «o culpado é o professor. Deveria ter feito teste diferentes, como é óbvio os alunos falam entre eles.» Em lugar de «falam», devia ter escrito «copiam», não por uma questão de descaramento, mas de objectividade. Outra mãe, proveniente do Brasil (lá como cá e vice-versa), ameaçava: «espero que a média dela [a sua educanda] não fique abaixo à do período passado, pois se assim acontecer, irei fazer uma reclamação às autoridades competentes»…

Até ao conselho de turma de avaliação nem os encarregados de educação nem os alunos se debruçaram sobre a batota em si, com excepção de uma menina que, na última aula, se lhe referiu levemente como «acontecimento lamentável».

Assim vão as coisas. Os meninos que iniciam o ensino secundário na escola pública, grosso modo, não vêm bem preparados (muitos, nem minimamente…) nem conseguem estar adequadamente no que deviam ser aulas. Dizem(-nos) que tem que se usar pedagogias activas, tomando-se por actividade qualquer balbúrdia na sala de aulas. Ensinar e aprender passou de moda. E copiar já não é uma fraude, é mais uma espécie de “direito”.

Militantemente, caminhamos para aonde?

José Batista d’Ascenção