sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Um dia a correr, com motivos de sorte

“Tenho a certeza que os professores de Portugal são dos melhores do mundo"…,
disse  o Presidente Marcelo, em  17/09/2018,  na  inauguração  das  obras de
requalificação da Escola Secundária de Celorico de Basto. Aqui.
Outros confortos, bem pequeninos, produzem um efeito mais efectivo.
Quarta-feira é um dia pesado para os alunos de uma das minhas turmas (e para mim). Eles (e eu) entram(os) às 08.20 horas, nesse dia, e terminam(os) ao fim da tarde, já noite, no Inverno. Ontem, Quinta-feira, havia teste [e se passássemos a fazer os ditos sem marcação, para medirmos o que os alunos sabem realmente, sem as «barrigadas» de estudo da véspera? – Nem pensar, era o fim do mundo!] e os alunos daquela turma, muito interessados, queriam esclarecer dúvidas, que tinham «aos montes». Por isso, alguns deles compareceram à sessão de apoio desse dia. E muito bem. Era isso que devia acontecer todas as Quartas-feiras, naquela hora.
Contudo, há uma menina que pratica «ballet» e que precisa treinar e actuar, o que a impede de ir à escola em certos dias. O trabalho dela é, assim, mais pesado (ainda) do que o dos colegas de turma. Dada a sua limitação de tempo pediu que, nessa Quarta-feira, ficássemos a esclarecer as suas dificuldades para lá da hora do fim do turno da tarde, após as 18.25 horas. E ficámos, pois então. Cansada, ela, e, não menos cansado, o professor. Ela, porque queria esforçar-se tanto quanto lhe fosse possível e o professor pelo prazer de poder sentir-se útil, que não há prémio mais estimulante para quem ensina do que o interesse manifesto, sobretudo se sofrido, de quem quer aprender.
Donde se prova, se dúvidas houvesse, que não é pela falta de alunos interessados que a escola falha. Há-os, e são muitos. Convinha que puséssemos os olhos neles.
Mas isso foi ao fim da tarde. Nessa Quarta, logo ao primeiro intervalo da manhã, por volta das dez, passando pelo bar, perguntava à directora se o esboço da autorização dos encarregados de educação para levar alunos a uma conferência sobre a floresta amazónica, a proferir pelo Prof. Jorge Paiva, no próximo dia 08 de Janeiro, estava conforme, e se me era permitido fazê-la seguir para a reprografia. Olhou-me e disse-me que não tinha tido tempo de ler (como os outros três colegas para quem também mandara o mesmo texto…), mas que sim, que tinha permissão (nem ela nem os colegas sabem da minha necessidade cada vez maior de que alguém leia e me alerte para as falhas do que redijo…). Nisto, a colega Aurora procurava-me para ver se seria possível uma permuta que lhe permitisse leccionar certa matéria e, ao mesmo tempo, dava-me conta de que a lâmpada do projector da sala onde acabara de dar aula, com uma turma que eu ia ter no tempo a seguir, nessa mesma sala, havia «explodido». Como também precisava de projectar umas imagens, saltei da preocupação dela para a minha preocupação com a lição que tinha que iniciar daí a cinco minutos. Numa corrida fui à portaria, procurar o sr Silva, para lhe perguntar se havia lâmpadas disponíveis e se ele poderia ir, mesmo durante o tempo de aula, fazer a substituição. Voltei à sala de professores, peguei na pasta e segui para a dita sala, a pensar em como me ia desenvencilhar. Chegado lá, o sr Silva, no alto de uma cadeira, preparava o projector afixado no tecto, mudando a lâmpada e ajustando a imagem. «Tudo sobre rodas». E a aula fluiu. Saído dela, corri para a reprografia, onde tinha papelada formal necessária (planificação e grelha de aula a observar noutra escola), que o sr Álvaro me estendia prontamente. Recolhi-a, agradeci e segui.
Regressado à sala de professores, dirigiu-se-me simpaticamente a coordenadora de departamento, para me dizer que era necessário que me disponibilizasse para também ser avaliador interno (de colegas), função que (muito) me aflige. Colhido de surpresa, tentei argumentar com a minha falta de energia para a sobrecarga, a que ela contrapôs a facilidade da tarefa, de mais a mais já a fazendo «para fora», tudo com uma amabilidade tal que me senti encravado. A minha hesitação foi tomada por aceitação, recebi um beijo em cada face, e senti-me mais encravado ainda.
Sentei-me, coligi uns registos, olhei o relógio e decidi ir almoçar qualquer coisa, ali próximo, antes da primeira sessão de apoio. Aguardava a comida e, ao lado, o meu colega José Cidade, já aposentado, brincava com o benefício dos professores no activo, os quais são tão privilegiados que ainda se dão ao luxo de ir comer fora.
De estômago composto, regressei à escola para o turno da tarde, que foi longo e lento, por entre apoios e aulas.
Ao final do dia, de gatas, pensei no conjunto de privilégios que é o meu: ter (ainda) alguma saúde, ter trabalho, ter pão e ter alguém que me trata com carinho, além de poder fazer algumas coisas de que gosto e que dão sentido à (minha) existência.
Não que a vida de um professor seja um mar de rosas. Não é. Mas há muitos aspectos bonitos na profissão. E vale a pena reparar neles (até para compensar certas faltas e falhas), mesmo num dia a correr.

José Batista d’Ascenção

domingo, 24 de novembro de 2019

«Questão de aula», diz-se agora

Fonte da imagem: aqui.
Quem há muitos anos anda na lida das escolas do ensino básico e secundário, especialmente se é professor (e dá aulas), sabe como a terminologia e os procedimentos formais recomendados mudam ao sabor de quem ocupa posições de influência normativa, como se se tratasse de inovações de relevo, não obstante o carácter requentado ou desusado de propostas que, em tempos passados e lugares diversos, nada mostraram para além do comum e, às vezes, inadequado. Quando «introduzidas», a pressão exercida sobre os docentes só tem paralelo na aversão e desânimo que causa naqueles que não abdicam de um módico de lucidez e no entusiasmo com que outros se agarram fugazmente a uma suposta «tábua de salvação» que, em breve, os atira para o desejo de que outra coisa qualquer lhes traga nova e mais auspiciosa ilusão. Ainda que passageira. E não se sabe qual é o sofrimento mais doloroso, se o dos que não se deixam iludir, se o dos que almejam por quaisquer utopias, mesmo que pobrezinhas.
Desta vez, com tamanha pressão formal de que é preciso formar cidadãos para uma sociedade inclusiva, carrega-se na «cidadania» e na «inclusão», a fim de que se consiga encaixar os alunos no perfil legal que lhes desenharam para a saída de cada ciclo de ensino. Perfis cheios de exigências que devia ser supérfluo enunciar, se a escola funcionasse (isto é, se tivesse condições para funcionar) como devia. E parece que nos alheamos do facto de que é preparando os alunos e munindo-os de algum corpo de conhecimentos: linguísticos, filosóficos e científicos, que deviam aprender nas escolas, que se obtém a cidadania e se consegue incluir os jovens na sociedade. A cidadania não é um revestimento que se exibe em certas ocasiões para funcionar como evidência a avaliar numa classificação, nem a inclusão é um verniz para disfarçar temporariamente as deficiências que hão-de atirar às feras os seus portadores, quando já não servirem para justificar uns quantos empregos (que não os dos próprios). A cidadania ou é dignamente sóbria e efectiva e permanente, como se deve exigir (depois de dar o exemplo), ou, sendo exibida em sessões marcadas, não merece o nome. E a inclusão ou se faz preparando cada um para o que está ao seu alcance ou é uma sementeira de frustrações a breve prazo.
Ora, como é preciso avaliar toda a gente a todo o momento, como se o produto do que os alunos fazem e aquilo que são ou manifestam não fosse evidente, tem ainda que se arranjar umas metodologias que consigam o milagre de todos terem sucesso. Ainda que fingido. Desta feita, tornou-se moda, nas escolas, o recurso a uma «figura» supostamente diferente no estímulo à aprendizagem e na eficácia da recolha dos dados de sucesso, mesmo os mais «recônditos», que dá pelo nome de “questões de aula”. Basicamente é um conjunto de perguntas ou uns exercícios que os alunos fazem nas aulas e que os professores levam para casa e «corrigem», atribuindo uma cotação. Não dá para acreditar, é certo. Mas é isto. Sempre se fez e sempre valeu o que valeu. Agora revisitamo-lo sob um nome… falho de pertinência.
Não se sabe por quanto tempo durará a designação. Sabe-se apenas que não traz nada de novo.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Convém que eduquemos as crianças

Coisas que (ainda) não podem ser ditas

Imagem obtida aqui.
Os que hoje passam os dias nas escolas de quaisquer níveis de ensino, professores, funcionários (a que agora chamam «assistentes operacionais», desconhecendo-se embora por quanto tempo, face à mutabilidade da nomenclatura), visitantes e convidados, sabem (e sentem) que o endeusamento das crianças é contraproducente. Pequeninos e crescidinhos vão à escola para aprender: é essa a função da escola (ou devia ser, e quando não é torna-se uma fonte de problemas para professores, auxiliares e pais e para as próprias crianças).
A partir da segunda metade do século XX entendeu-se, e bem, que educar pela positiva, envolvendo os alunos com entusiasmo, traria bem-estar, felicidade e prosperidade às crianças e às sociedades. Porém, não poucos dos mais acérrimos derivaram para a ideia de não contrariar os petizes e de tudo (os deixar) fazer para que se sentissem sempre felizes, qual condição para se construírem sociedades mais harmónicas e humanamente realizadas. As escolas seriam factores preponderantes para se obrarem milagres de tal monta. Poucos contrariaram oportuna e publicamente o exagero e o risco de crenças deste tipo.
Era preciso formar professores, científica e pedagogicamente. E a pedagogia, desde sempre uma arte (que, como qualquer arte, não funciona à margem da ciência), passou a receituário com verniz científico. Multiplicaram-se os pedagogos. E os psicopedagogos. E os pedopsiquiatras. Então, os conteúdos passaram a ser cada vez menos importantes e as metodologias (também se multiplicaram os metodólogos…) cresceram de forma galopante, em diversidade paralela e ao longo do tempo. Defendeu-se que o professor não deve transmitir nem ensinar, as crianças é que fazem descobertas e constroem o seu conhecimento. Muitos destes especialistas deram aulas sofríveis durante pouco ou nenhum tempo e enfronharam-se cada vez mais nas suas teorias apologéticas. A formação de professores viu crescer o que no dizer de muitos eram as «ciências ocultas», um vazio teorético, servido por um linguajar abstruso que um ministro da educação baptizou de «eduquês». Com o devir, logo psicólogos e alguns psiquiatras começaram a reclamar para as escolas serviços de psicologia e de orientação vocacional, assim como de especificação das condições em que os alunos devem frequentar as aulas e prestar provas de avaliação. Logo de seguida viria o «cardápio» da integração e da inclusão, com um leque imenso de situações caracterizadas de formas e segundo fórmulas cada vez mais intricadas e impraticáveis.
Ao mesmo tempo, o sucesso tornou-se um direito e a responsabilidade de o obter foi artificial e burocraticamente passada dos alunos e dos seus encarregados de educação para os professores. Com o argumento de que o sucesso tem que existir, dado que os técnicos tipificam as dificuldades e esclarecem os docentes, pelo que a mecânica funciona obrigatoriamente, de modo que todos podem aprender qualquer assunto em qualquer idade, quaisquer que sejam as suas condições e circunstâncias. Isto é falso, mas vigora na exigência que se faz às escolas. 
E os políticos, «surfando» ou estimulando as ondas populistas, com o apoio de sociólogos, jornalistas e opinadores, fixaram-se na exigência da avaliação burocrática dos professores (avaliação que nunca exigiram à qualidade da formação e dos diplomas com que alguns foram habilitados!), ainda que através de sistemas falhos de objectividade e de justiça, e porfiaram em desacreditar e «quebrar» os professores, ignorando que, entre eles, muitos havia que queriam que a incompetência fosse penalizada e o trabalho honesto respeitado. Passou-se então a apelar à presença dos encarregados de educação nas escolas, como intervenientes e decisores pedagógicos. Alguns deles aproveitaram o estímulo e, de modo drástico e premeditado, exerceram pressões ilegítimas e violência (não apenas física) sobre os docentes, o que ocorreu repetidamente, em geografias variáveis, sem responsabilização (muito menos punição), perante a indiferença das hierarquias, a começar pela cobardia e cinzentismo de muitas direções escolares. Como os maus exemplos tendem a propagar-se, os próprios alunos, às vezes crianças ainda, passaram a agredir os professores, ante a mesma passividade orgânica e social. Não é do conhecimento público que estes problemas tenham merecido análise acurada das inspecções escolares. Nem estas situações configuram crimes públicos. Para minimizar situações chocantes, logo os «psis» engajados e os seus seguidores repetem a lengalenga dos casos pontuais e a necessidade de se distinguir indisciplina de violência. Necessidade deles, diga-se, pois que, todas as situações de indisciplina reiterada ou persistente constituem violência sobre os professores. Como era previsível, estes casos «transbordaram» das escolas e, em casa, não poucos pais e alguns avós passaram a apanhar pancada de crianças e adolescentes. Sobre isto nem os próprios falam. O conceito de violência doméstica não parece abranger estes casos.
Este caldo de cultura existe, não é discreto nem tende a diminuir. Mas não se vislumbra modo de o encarar. Insiste-se em que há casos sem relevância estatística. Como se a dificuldade em os traduzir em números fosse comparável à cobardia com que são ignorados. Assim, opta-se por mascaradas: arranjam-se bodes expiatórios, como o da incompetência intrínseca dos professores (que sempre os houve e há, desde a original e irremediável impreparação com que algumas organizações sem valia científica diplomaram parte deles) ou impingem-se práticas simbólicas pouco credíveis, como a de encontrar o «melhor professor do ano».
Chegámos onde estamos. O falecido economista Silva Lopes, um dia, na televisão, chamou à escola «uma bandalheira».
Será preciso o tempo e os sacrifícios de algumas gerações para a «reabilitar».

José Batista d’Ascenção

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Para que serve e como se mede o que se aprende na escola?

Imagens da divisão celular por mitose em células do ápice de
raiz de cebola (Allium cepa L.), coradas com orceína acética.
[ESCA, Outubro de 2019]
Tenho para mim que a vida é um exame permanente, a que cada um vai respondendo conforme as suas circunstâncias e de acordo com as suas capacidades e possibilidades. Por essa razão primordial, concordo e defendo a realização de exames nos fins de ciclo da escolaridade obrigatória.
Dito isto, acrescento (também) que a elaboração de provas de exame deve obedecer ao estabelecido nos programas das diferentes disciplinas e respeitar (e incentivar) o esforço de quem aprende e o trabalho de quem ensina. Digo-o pensando no tipo de provas de exame nacional da disciplina de biologia e geologia do ensino secundário que têm sido aplicadas desde 2006. E quando refiro as provas, englobo não só o modo como são elaboradas certas questões (a fazer lembrar charadas de espíritos não propriamente apaixonados pelas matérias), como as respostas e os critérios com que são classificadas. Neste âmbito, há quem insista na necessidade de formação de professores, formação para elaborar questões segundo os modelos de exame e para as classificar, note-se, o que me parece desfocado do essencial: os professores precisam (muito) de (muita) formação mas sobre a vastidão de conteúdos que devem ensinar, dispensando que os entranhem em modos arrevesados ou obtusos de conceber questões, em prejuízo da simplificação e da clareza dos enunciados, até para tornar efectiva a redução dos extraordinários gastos de papel, exigidos para dar vazão a inumeráveis perguntas de opção, por exemplo. O ambiente e a economia (do país, das escolas e das pessoas…) agradeciam.
Tudo o que antes disse vem a propósito das aulas práticas que fiz (como os meus colegas fizeram) o mês passado, nas minhas turmas de 11º ano, sobre divisão de células nucleadas, por um processo típico, chamado «mitose», mediante o qual cada célula origina duas que são cópias genéticas da célula-mãe. Este processo de divisão celular está na base do crescimento, da regeneração de tecidos, da substituição de células mortas e em todos os processos de reprodução não sexuada de seres com células com núcleo (células eucarióticas, razão por que esses seres se chamam seres eucariontes).
Ora, os alunos participaram nos trabalhos com entusiasmo, fizeram preparações de células da extremidade da raiz de cebola, observaram-nas ao microscópio óptico (com ampliações de 600x) e fotografaram-nas com os seus telemóveis. Gostaram da actividade prática, foram capazes de executar os diferentes passos com destreza razoável e entenderam bastante bem o processo. Quando fizeram uma ficha específica sobre esse trabalho corresponderam sem dificuldades.
Agora, a relação dos terceiro e quarto parágrafos deste texto com o primeiro e o segundo: Nos exames nacionais, isto raramente lhes é perguntado e, quando o é, leva tais voltas que boa parte dos alunos, senão a maioria, não são capazes de responder. Eu próprio, como os alunos, chego a ter dificuldade em saber exactamente o que que as perguntas perguntam.
A questão que se (me) levanta é esta: quem ganha o quê com isso?

José Batista d’Ascenção