Coisas que (ainda) não podem ser ditas
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Os que hoje passam os dias nas escolas de quaisquer níveis de ensino, professores, funcionários (a que agora chamam «assistentes operacionais», desconhecendo-se embora por quanto tempo, face à mutabilidade da nomenclatura), visitantes e convidados, sabem (e sentem) que o endeusamento das crianças é contraproducente. Pequeninos e crescidinhos vão à escola para aprender: é essa a função da escola (ou devia ser, e quando não é torna-se uma fonte de problemas para professores, auxiliares e pais e para as próprias crianças).
A partir da segunda metade do século XX entendeu-se, e bem, que educar pela positiva, envolvendo os alunos com entusiasmo, traria bem-estar, felicidade e prosperidade às crianças e às sociedades. Porém, não poucos dos mais acérrimos derivaram para a ideia de não contrariar os petizes e de tudo (os deixar) fazer para que se sentissem sempre felizes, qual condição para se construírem sociedades mais harmónicas e humanamente realizadas. As escolas seriam factores preponderantes para se obrarem milagres de tal monta. Poucos contrariaram oportuna e publicamente o exagero e o risco de crenças deste tipo.
Era preciso formar professores, científica e pedagogicamente. E a pedagogia, desde sempre uma arte (que, como qualquer arte, não funciona à margem da ciência), passou a receituário com verniz científico. Multiplicaram-se os pedagogos. E os psicopedagogos. E os pedopsiquiatras. Então, os conteúdos passaram a ser cada vez menos importantes e as metodologias (também se multiplicaram os metodólogos…) cresceram de forma galopante, em diversidade paralela e ao longo do tempo. Defendeu-se que o professor não deve transmitir nem ensinar, as crianças é que fazem descobertas e constroem o seu conhecimento. Muitos destes especialistas deram aulas sofríveis durante pouco ou nenhum tempo e enfronharam-se cada vez mais nas suas teorias apologéticas. A formação de professores viu crescer o que no dizer de muitos eram as «ciências ocultas», um vazio teorético, servido por um linguajar abstruso que um ministro da educação baptizou de «eduquês». Com o devir, logo psicólogos e alguns psiquiatras começaram a reclamar para as escolas serviços de psicologia e de orientação vocacional, assim como de especificação das condições em que os alunos devem frequentar as aulas e prestar provas de avaliação. Logo de seguida viria o «cardápio» da integração e da inclusão, com um leque imenso de situações caracterizadas de formas e segundo fórmulas cada vez mais intricadas e impraticáveis.
Ao mesmo tempo, o sucesso tornou-se um direito e a responsabilidade de o obter foi artificial e burocraticamente passada dos alunos e dos seus encarregados de educação para os professores. Com o argumento de que o sucesso tem que existir, dado que os técnicos tipificam as dificuldades e esclarecem os docentes, pelo que a mecânica funciona obrigatoriamente, de modo que todos podem aprender qualquer assunto em qualquer idade, quaisquer que sejam as suas condições e circunstâncias. Isto é falso, mas vigora na exigência que se faz às escolas.
E os políticos, «surfando» ou estimulando as ondas populistas, com o apoio de sociólogos, jornalistas e opinadores, fixaram-se na exigência da avaliação burocrática dos professores (avaliação que nunca exigiram à qualidade da formação e dos diplomas com que alguns foram habilitados!), ainda que através de sistemas falhos de objectividade e de justiça, e porfiaram em desacreditar e «quebrar» os professores, ignorando que, entre eles, muitos havia que queriam que a incompetência fosse penalizada e o trabalho honesto respeitado. Passou-se então a apelar à presença dos encarregados de educação nas escolas, como intervenientes e decisores pedagógicos. Alguns deles aproveitaram o estímulo e, de modo drástico e premeditado, exerceram pressões ilegítimas e violência (não apenas física) sobre os docentes, o que ocorreu repetidamente, em geografias variáveis, sem responsabilização (muito menos punição), perante a indiferença das hierarquias, a começar pela cobardia e cinzentismo de muitas direções escolares. Como os maus exemplos tendem a propagar-se, os próprios alunos, às vezes crianças ainda, passaram a agredir os professores, ante a mesma passividade orgânica e social. Não é do conhecimento público que estes problemas tenham merecido análise acurada das inspecções escolares. Nem estas situações configuram crimes públicos. Para minimizar situações chocantes, logo os «psis» engajados e os seus seguidores repetem a lengalenga dos casos pontuais e a necessidade de se distinguir indisciplina de violência. Necessidade deles, diga-se, pois que, todas as situações de indisciplina reiterada ou persistente constituem violência sobre os professores. Como era previsível, estes casos «transbordaram» das escolas e, em casa, não poucos pais e alguns avós passaram a apanhar pancada de crianças e adolescentes. Sobre isto nem os próprios falam. O conceito de violência doméstica não parece abranger estes casos.
Este caldo de cultura existe, não é discreto nem tende a diminuir. Mas não se vislumbra modo de o encarar. Insiste-se em que há casos sem relevância estatística. Como se a dificuldade em os traduzir em números fosse comparável à cobardia com que são ignorados. Assim, opta-se por mascaradas: arranjam-se bodes expiatórios, como o da incompetência intrínseca dos professores (que sempre os houve e há, desde a original e irremediável impreparação com que algumas organizações sem valia científica diplomaram parte deles) ou impingem-se práticas simbólicas pouco credíveis, como a de encontrar o «melhor professor do ano».
Chegámos onde estamos. O falecido economista Silva Lopes, um dia, na televisão, chamou à escola «uma bandalheira».
Será preciso o tempo e os sacrifícios de algumas gerações para a «reabilitar».
José Batista d’Ascenção
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