terça-feira, 12 de novembro de 2019

Convém que eduquemos as crianças

Coisas que (ainda) não podem ser ditas

Imagem obtida aqui.
Os que hoje passam os dias nas escolas de quaisquer níveis de ensino, professores, funcionários (a que agora chamam «assistentes operacionais», desconhecendo-se embora por quanto tempo, face à mutabilidade da nomenclatura), visitantes e convidados, sabem (e sentem) que o endeusamento das crianças é contraproducente. Pequeninos e crescidinhos vão à escola para aprender: é essa a função da escola (ou devia ser, e quando não é torna-se uma fonte de problemas para professores, auxiliares e pais e para as próprias crianças).
A partir da segunda metade do século XX entendeu-se, e bem, que educar pela positiva, envolvendo os alunos com entusiasmo, traria bem-estar, felicidade e prosperidade às crianças e às sociedades. Porém, não poucos dos mais acérrimos derivaram para a ideia de não contrariar os petizes e de tudo (os deixar) fazer para que se sentissem sempre felizes, qual condição para se construírem sociedades mais harmónicas e humanamente realizadas. As escolas seriam factores preponderantes para se obrarem milagres de tal monta. Poucos contrariaram oportuna e publicamente o exagero e o risco de crenças deste tipo.
Era preciso formar professores, científica e pedagogicamente. E a pedagogia, desde sempre uma arte (que, como qualquer arte, não funciona à margem da ciência), passou a receituário com verniz científico. Multiplicaram-se os pedagogos. E os psicopedagogos. E os pedopsiquiatras. Então, os conteúdos passaram a ser cada vez menos importantes e as metodologias (também se multiplicaram os metodólogos…) cresceram de forma galopante, em diversidade paralela e ao longo do tempo. Defendeu-se que o professor não deve transmitir nem ensinar, as crianças é que fazem descobertas e constroem o seu conhecimento. Muitos destes especialistas deram aulas sofríveis durante pouco ou nenhum tempo e enfronharam-se cada vez mais nas suas teorias apologéticas. A formação de professores viu crescer o que no dizer de muitos eram as «ciências ocultas», um vazio teorético, servido por um linguajar abstruso que um ministro da educação baptizou de «eduquês». Com o devir, logo psicólogos e alguns psiquiatras começaram a reclamar para as escolas serviços de psicologia e de orientação vocacional, assim como de especificação das condições em que os alunos devem frequentar as aulas e prestar provas de avaliação. Logo de seguida viria o «cardápio» da integração e da inclusão, com um leque imenso de situações caracterizadas de formas e segundo fórmulas cada vez mais intricadas e impraticáveis.
Ao mesmo tempo, o sucesso tornou-se um direito e a responsabilidade de o obter foi artificial e burocraticamente passada dos alunos e dos seus encarregados de educação para os professores. Com o argumento de que o sucesso tem que existir, dado que os técnicos tipificam as dificuldades e esclarecem os docentes, pelo que a mecânica funciona obrigatoriamente, de modo que todos podem aprender qualquer assunto em qualquer idade, quaisquer que sejam as suas condições e circunstâncias. Isto é falso, mas vigora na exigência que se faz às escolas. 
E os políticos, «surfando» ou estimulando as ondas populistas, com o apoio de sociólogos, jornalistas e opinadores, fixaram-se na exigência da avaliação burocrática dos professores (avaliação que nunca exigiram à qualidade da formação e dos diplomas com que alguns foram habilitados!), ainda que através de sistemas falhos de objectividade e de justiça, e porfiaram em desacreditar e «quebrar» os professores, ignorando que, entre eles, muitos havia que queriam que a incompetência fosse penalizada e o trabalho honesto respeitado. Passou-se então a apelar à presença dos encarregados de educação nas escolas, como intervenientes e decisores pedagógicos. Alguns deles aproveitaram o estímulo e, de modo drástico e premeditado, exerceram pressões ilegítimas e violência (não apenas física) sobre os docentes, o que ocorreu repetidamente, em geografias variáveis, sem responsabilização (muito menos punição), perante a indiferença das hierarquias, a começar pela cobardia e cinzentismo de muitas direções escolares. Como os maus exemplos tendem a propagar-se, os próprios alunos, às vezes crianças ainda, passaram a agredir os professores, ante a mesma passividade orgânica e social. Não é do conhecimento público que estes problemas tenham merecido análise acurada das inspecções escolares. Nem estas situações configuram crimes públicos. Para minimizar situações chocantes, logo os «psis» engajados e os seus seguidores repetem a lengalenga dos casos pontuais e a necessidade de se distinguir indisciplina de violência. Necessidade deles, diga-se, pois que, todas as situações de indisciplina reiterada ou persistente constituem violência sobre os professores. Como era previsível, estes casos «transbordaram» das escolas e, em casa, não poucos pais e alguns avós passaram a apanhar pancada de crianças e adolescentes. Sobre isto nem os próprios falam. O conceito de violência doméstica não parece abranger estes casos.
Este caldo de cultura existe, não é discreto nem tende a diminuir. Mas não se vislumbra modo de o encarar. Insiste-se em que há casos sem relevância estatística. Como se a dificuldade em os traduzir em números fosse comparável à cobardia com que são ignorados. Assim, opta-se por mascaradas: arranjam-se bodes expiatórios, como o da incompetência intrínseca dos professores (que sempre os houve e há, desde a original e irremediável impreparação com que algumas organizações sem valia científica diplomaram parte deles) ou impingem-se práticas simbólicas pouco credíveis, como a de encontrar o «melhor professor do ano».
Chegámos onde estamos. O falecido economista Silva Lopes, um dia, na televisão, chamou à escola «uma bandalheira».
Será preciso o tempo e os sacrifícios de algumas gerações para a «reabilitar».

José Batista d’Ascenção

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