quinta-feira, 12 de março de 2020

Pensamentos curtos de uma manhã de expectativa na escola

Doze de Março, chegada à escola pouco depois das 08.00 horas. A rádio repete a notícia de que não há recomendação de encerramento geral das escolas por causa do novo vírus, que se vai disseminando. Anuncia também que os directores dos estabelecimentos de ensino discordam desta recomendação do conselho nacional de saúde pública [ver nota de acualização]. Anuncia ainda que o presidente dos EUA determina o impedimento de os europeus, com excepção dos britânicos, entrarem no seu país.
Na sala de professores, antes do toque de entrada, as conversas incidem sobre a nova infecção: há comentários diversos, alguns brincalhões, risos e… apreensão. As pessoas parecem(-me) receosas.
Na sala de aula, os alunos não se revelam diferentes do habitual. Vamos fazer teste e eles estão apostos. Nenhum faltou. O ambiente é silencioso e sereno.
Lá fora o dia é claro, o sol entra pelas janelas, no espaço entre e abaixo dos estores, e a temperatura é agradável para a época, o que talvez contribua para a placidez das atitudes.
Gosto de ver os alunos aplicados, dando o seu melhor, em ambiente de razoável conforto e de afecto. A estes, que agora vigio, provavelmente deixarei de lhes dar aulas formais dentro de menos de três meses, se o calendário se cumprir. Aproxima-se aquele tempo que, em breve, acelera e (me) foge. Penso nisto e sinto qualquer coisa indefinida, que não é (ainda) saudade nem deixa de ser. Depois destes alunos, outros virão, se eu estiver capaz, mas já estava afeiçoado aos rapazes e raparigas com quem trabalho, e custa-me a ideia de deixá-los. Que percursos vão ter, não o imagino. Que contributo ou marca ou recordação deixarei neles, não o sei. Admito que, em alguns, não tenha deixado nada de particular. Se assim for é porque não mereci mais ou melhor. Gostaria de não ter sido um obstáculo no caminho de qualquer deles. Não excluindo a possibilidade de que algum sinta desse modo, resta-me a esperança de que não atribua a causa a qualquer razão intencional da minha parte. Prossiga cada um o seu caminho. Aonde chegar ou não também pode ser responsabilidade minha.
Humildemente a assumo, qualquer seja.
Derivando para este assunto, consegui desviar o pensamento do motivo que, por agora, não sai da cabeça de quase toda a gente nas escolas.

Nota de actulização: Ao início da noite, o primeiro-ministro, António Costa, contraria o parecer do conselho nacional de saúde pública, optando pelo encerramento de todas as escolas do país, a partir da próxima segunda-feira. Esta medida vem ao encontro do desejo da generalidade das pessoas. Espera-se agora que cada cidadão saiba cumprir o seu dever no que respeita às regras de higiene e de saúde. E deseja-se que os direitos das pessoas que trabalham sejam respeitados. 

José Batista d’Ascenção

domingo, 8 de março de 2020

Propostas para o ensino secundário, de há quase vinte e cinco anos (a propósito do texto anterior, e como foram publicadas então)


«Enquanto docente do ensino secundário, coube-me participar nas actividades do «Encontro no Secundário» realizado na Escola Sá de Miranda, Braga, no passado dia 10 de Outubro [de 1997], promovido pelo Departamento do Ensino Secundário (DES). Os temas a tratar passavam pela estrutura, pelos currículos, pela autonomia e pela importância dos valores. O objectivo era a discussão e recolha das opiniões dos professores sobre cada um daqueles temas.
Causou-me alguma surpresa, logo na abertura, a insistência dos representantes do DES em que não se pretendiam mudanças profundas, nem as expectativas deviam ser colocadas muito alto. Pensei: e se houver alterações significativas consensuais a propor após a discussão? Por outro lado, se não se pretendiam grandes alterações, porquê e para quê a reunião?
O grupo de trabalho em que fiquei incluído tratou especificamente dos currículos/programas/aprendizagens.
Houve unanimidade em que as horas lectivas são excessivas para os alunos, embora eles devessem permanecer o mesmo ou até mais tempo na escola. Foi viva a discussão sobre a utilidade/inutilidade de algumas disciplinas, designadamente as de técnicas laboratoriais independentes das disciplinas teóricas (…) Houve consenso sobre a inadequação, a desarticulação e o carácter estanque de muitos programas. Foi apontado que os programas deveriam ser estudados para possibilitarem condições efectivas de interdisciplinaridade e definirem para cada disciplina um núcleo de conteúdos comuns a todo o território nacional. Deveriam, porém, deixar uma margem para a abordagem de assuntos de carácter regional ou local ou permitirem trabalho de projecto, de acordo com o interesse dos alunos e da comunidade educativa, motivação e competência dos professores e condições de funcionamento das escolas. Em alternativa, restariam sempre alíneas programáticas de interesse a desenvolver, complementar ou aprofundar, impedindo vazios programáticos.
Nesta perspectiva, a área-escolas foi destacada como área curricular sem condições de concretização, porque na prática surge como um suposto remédio para a falta de interdisciplinaridade nos programas, e para a sua inadequação e desligação do real, com tradução directa no desinteresse dos alunos. Como até há bem pouco tempo todos os programas eram demasiado extensos e os professores tinham que justificar o seu eventual não cumprimento, compreende-se a antipatia pela área-escola. Se a isto se juntar a falta de meios e de espaços das escolas e a dificuldade de fazer encontrar todos os professores de uma mesma turma sem que nenhum deles esteja a faltar a outras turmas, percebem-se as dificuldades… (…) A área-escola foi referida como devendo passar a ser facultativa no ensino secundário, especialmente no 12º ano. Só quando os programas contiverem sementes, abrirem as portas e estabelecerem pontes entre si e com o «mundo real», só quando as condições materiais e de funcionamento das escolas se modificarem é que os (nobres) objectivos da área-escola poderão ser cumpridos. Mas, então, talvez se deva mudar-lhe o nome, devido aos anticorpos que já criou e a fizeram fenecer…
(…) Sobre as provas globais foi consensual que não cumprem os objectivos para que foram criadas e que reúnem, nos actuais moldes, excessivos aspectos negativos.
(…) A acção terminaria com um plenário, onde as conclusões de cada grupo de trabalho deveriam ter sido apresentadas e comentadas de modo resumido. O signatário interrogou a mesa  sobre a necessidade de se percorrer um caminho, porventura difícil, na definição e clarificação de valores que devem enformar o perfil do aluno no final do ensino secundário. A resposta viria de um elemento do DES, em termos de grande enfado e inadequação, com significado que só se pôde interpretar como uma fuga ao assunto.
O apelo final da direcção do DES consistiu no mesmo comentário de não se esperarem grandes mudanças nem se colocarem muito alto as expectativas. Que pena!, digo eu. Porque entendi útil a discussão, e porque me ficaram dúvidas sobre se alguns aspectos úteis dessa discussão vão servir para alguma coisa, quis produzir este escrito.
José Batista d’Ascenção.»

In: jornal «Público» de 29 de Outubro de 1997, página 12

Adenda: Ironicamente, várias das propostas feitas vieram a ser concretizadas: mudança de programas e disciplinas, fim e substituição da área-escola, fim das provas globais, definição (mais recentemente) do perfil dos alunos à saída do ensino secundário. No entanto, em minha opinião, o ensino não está melhor…

José Batista d’Ascenção

Autobiografia profissional de um professor: «Memórias, Referências e Perceções», de Vicente Ferreira. Edições Vieira da Silva.

Interessado que sou na opinião dos professores sobre as condições do exercício da profissão, e tendo trabalhado com o autor na mesma escola (a secundária D. Maria II, em Braga), durante quatro anos (1995/96-1998/99), tive curiosidade na leitura deste livro.
Desde as condições socioeconómicas e experiências vividas pelo autor enquanto aluno, passando pelas muitas e variadas funções docentes ou relacionadas que desempenhou, incluindo a sua formação pessoal (valores éticos e morais, princípios filosóficos, sentimentos e reflexões), os seus objectivos (enquanto pessoa, cidadão e profissional), e as influências que assimilou, ao longo de 36 anos de serviço em várias escolas, quase todas de Trás-os-Montes e do Minho, até ao pedido de rescisão (em Setembro de 2014), tudo isso e muito mais consta neste livro. Vicente Ferreira desenvolve exaustivamente os acontecimentos que viveu, sem cair em acusações, no caso dos menos bons, e referindo profusamente os nomes dos envolvidos, particularmente nas vivências boas: alunos, professores, funcionários, personalidades e entidades.
Os «cânones» de funcionamento das nossas escolas do ensino básico (de que só conheço por experiência o 3º ciclo) e secundário, do pós-25 de Abril, estão factualmente explanados na obra. E não cobrem de dignidade nem o ministério da educação, nem os professores, nem as direcções das escolas, nem os seus conselhos pedagógicos, nem as estruturas hierárquicas externas que existiram em tempos, como as coordenações de área educativa ou as direcções regionais de educação (do Norte, neste caso), nem os sindicatos, nem as inspecções. Também não escapam à pena analítica e documental de Vicente Ferreira as insuficiências pedagógicas da formação de professores que ele mesmo viveu numa escola superior de educação, ao tempo em que se profissionalizava. Viria, porém, a descobrir, por autoformação, por um lado, e pela frequência de cursos, por outro lado, a importância da preparação pedagógica dos docentes, fundada nas ciências da educação, que reputa de fundamental.
Mas não se pense que o livro contém um repositório ácido do que de menos bons houve e há nas escolas portuguesas. Obstinadamente laborioso e organizado, Vicente apresenta muitos aspectos positivos da acção dos professores e das escolas, quer os que protagonizou quer aqueles que acompanhou ou de que foi testemunha, na condição de docente (de matemática), director de turma, coordenador de departamento, elemento de equipas de direcção ou o seu líder, entre muitas outras funções.
Da parte do livro respeitante aos anos em que trabalhámos na mesma escola e em que ele continuou por mais dois anos, depois de eu sair, não me espantam os problemas terríveis que refere, por admitir que situações daquele teor possam não ter sido raras, na região e no país. Não o afirmo para desvalorizar o ocorrido, nem a denúncia em tempo próprio, nem a análise posterior, mas antes para acentuar o dever e a coragem necessária à oposição assumida e ao registo para memória futura.
Na página 192, faz o autor referência à sua participação numa actividade promovida pelo então director do departamento do ensino secundário, em 10 de Outubro de 1997, a qual, nas suas palavras, foi «uma iniciativa que tinha em vista conferir centralidade ao comportamento ético das entidades e das Instituições Educativas». Lembro-me: também participei nesse acontecimento, mas na vertente relativa ao currículo, por indicação da então presidente do conselho directivo da Escola Secundária D. Maria II, Luísa Vilaça. E do que foi a minha participação dei conta em texto intitulado «Ensino Secundário – que orientações?», publicado no jornal «Público» de 29 de Outubro de 1997, na página 12. 
De Luísa Vilaça me ficou grata recordação. Quando, em 1998, por razões pessoais, me submeti a concurso para mudar de escola, logo ela se me dirigiu para me dizer, com carinho, que ficava à espera que eu fosse à secretaria, dentro do prazo permitido, retirar o boletim de candidatura. Encontrei-a vinte anos depois num jantar de solidariedade e troquei com ela um abraço sentido e comovido durante largos segundos. Por isso, li com especial agrado o que no livro se regista, na página 237: …«pensando bem, ela [Luísa Vilaça] foi a única que nada ganhou com aquilo tudo»…
Vicente Ferreira é um homem de princípios e de fé. É também um homem de convicções e de crenças. Como ele, penso que a ciência tem de fazer luz sobre os actos de ensinar, com as devidas implicações na psicopedagogia. Mas não julgo científicos certos preceitos que extravasam do que considero ciência aplicável à acção educativa, como é o caso da máxima «aprender a aprender», que não me parece mais que uma expressão artificial e genérica, incapaz, como outras, de conduzir à solução dos problemas de insucesso na aprendizagem. Abundam métodos e técnicas de educação que procuram revestir-se de verniz científico, mas que, na prática, carecem de eficácia cientificamente demonstrável. Até agora, não dispomos de opções metodológicas universais que funcionem eficazmente com todas as crianças, e muito particularmente com as que são socioeconomicamente desfavorecidas. Daí o meu respeito pela heterodoxia das práticas pedagógicas. À falta de melhor. E para não irmos ao engano…
Ao Vicente: um obrigado, pelo testemunho.

José Batista d’Ascenção