segunda-feira, 15 de março de 2021

Como os alunos não podem aprender o que consta de alguns programas escolares

Um exemplo: a coerência, a sequência e a articulação dos conteúdos da segunda parte da unidade 0 e da primeira parte da unidade 1 do programa de biologia de 10º ano


Há mais de um mês comecei a batalhar no estudo dos constituintes celulares com as minhas turmas de 10º ano de escolaridade. À distância as coisas são ainda mais difíceis, porque as aulas práticas de microscopia, sempre aliciantes, só são possíveis no laboratório. Descritos sumariamente os tipos de células propostos e os seus organelos, descemos ao nível dos constituintes químicos com referência ligeiríssima às substâncias inorgânicas (água e sais minerais), para nos demorarmos um pouco mais nos compostos orgânicos (prótidos, lípidos, glícidos e ácidos nucleicos). Como a generalidade dos alunos trazem noções rudimentares de química dos anos anteriores, e nem todos nem a maior parte, a “assimilação” é, para a maioria, muito problemática.

Na unidade 1 entra-se com o estudo da membrana das células. A sua ultraestrutura, a composição, as propriedades dos constituintes e, por consequência, as suas caractérísticas e funções. De seguida, os tipos de transporte através ou envolvendo a membrana e o modo como se processam. E aqui tudo bem. Há coerência. O resto seria trabalho.

Mas eis que, das membranas, se passa para a digestão intracelular, como se a relação fosse directa e consequente, logo facilmente apreensível. Daqui segue-se, em velocidade, para o estudo da evolução dos aparelhos digestivos dos animais, dos mais simples para os mais complexos [sendo de «evitar o estudo pormenorizado da morfofisiologia dos sistemas digestivos» (pg. 80 do programa). Pudera!], terminando no ser humano, no que seria retomar e ampliar o estudo realizado no nono ano. O artificialismo e a abrangência são notórios e a rapidez com que tudo se dá prejudica seriamente a apreensão rigorosa (e mínima) dos conceitos implicados e das suas múltiplas relações. Como se fosse pouco, sobra outra dificuldade. O papel dos catalisadores biológicos ou enzimas, surgido a propósito da digestão. Este estudo poderia ter sido introduzido atrás, aquando da referência às diversíssimas funções dos prótidos, no fim da unidade anterior, ou agora, no reforço do papel e da importância das enzimas digestivas. Porém, o programa da disciplina, relativamente às enzimas, apenas propõe «recordar e/ou enfatizar as funções principais das macromoléculas (estruturais, energéticas, enzimáticas, armazenamento e transferência de informação)» [pg. 79]. E a «operacionalização das aprendizagens essenciais» um documento que devia ser esclarecedor, repete: «caracterizar biomoléculas (prótidos, glícidos, lípidos, ácidos nucleicos) com base em aspetos químicos e funcionais (nomeadamente a função enzimática das proteínas), mobilizando conhecimentos de química (grupos funcionais, nomenclatura)» [pg. 8].

Perante isto, um humilde professor da disciplina faz, há muitos anos, esta pergunta simples: afinal, o que é que se deve dar sobre enzimas? Mas nunca encontrou quem lhe respondesse.

Nem a esta pergunta nem a uma infinidade de outras, de igual pertinência.

José Batista d’Ascenção

sábado, 13 de março de 2021

Tantos (os) que precisam(os) de apoio – e de compaixão

Excerto de um maravilhoso texto de António Barreto, no jornal «Público» de hoje – a parte relativa aos professores, apenas tão bela e merecida como as restantes (que englobam toda a gente.) 

[…]

«Professores, docentes e educadores precisam do nosso apoio. Com ou sem alunos, com e sem aulas presenciais, com e sem computadores e sistemas, estes profissionais viveram um ano inesquecível de sofrimento e exaustão, de riscos e incertezas. São eles a quem se entregam os maiores valores das nossas vidas, os filhos. São eles os primeiros de quem nos queixamos quando a falta de meios, a desordem legislativa, a paranóia regulamentar, a enxurrada de directivas, a obsessão dos despachos normativos e a turbulência mental de um ministério desnorteado perturbam a nossa vida colectiva.» […]

Sentidamente grato:

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 2 de março de 2021

Membrana celular e sistema endomembranar (II)

Texto destinado a alunos do 10º ano de escolaridade, motivo por que procura seguir as regras ortográficas de 1990

Imagem obtida aqui.

As vesículas endocíticas, caso contenham substâncias a digerir, movem-se no citoplasma ao encontro de outras vesículas cujo conteúdo é formado por enzimas digestivas (as quais têm de estar contidas, senão atacavam, por hidrólise, os próprios componentes celulares…). Essas vesículas são chamadas lisossomas. Da fusão entre as duas entidades resulta uma vesícula maior, designada vacúolo digestivo, em alusão à sua função. Após a digestão, as partículas mais simples, podem então atravessar a espessura da membrana e passar para o citoplasma, onde vão ser utilizadas.

Os lisossomas são originados em organelos membranares que formam o Complexo de Golgi (CG). Esta estrutura corresponde a uma série de conjuntos de sáculos achatados e empilhados (dictiossomas), sendo que cada conjunto cresce por coalescência e fusão de vesículas com conteúdo provenientes de estruturas próximas como a rede de cisternas membranares que se distribuem pelo citoplasma e que se designa Retículo Endoplasmático (RE). Na zona oposta de cada dictiossoma formam-se abundantes vesículas a partir dos sáculos, com os produtos maturados (enzimas, glicoproteínas, e polissacarídeos, por exemplo), cujos destinos são os diferentes locais da célula ou o exterior.

Quando ao RE se associam ribossomas, organelos não membranares que unem aminoácidos em cadeias proteicas (mediante ligações peptídicas), segundo uma ordem específica (estrutura primária de cada proteína), a face membranar virada para o citoplasma apresenta-se rugosa nas observações ao microscópio, pelo que a esse retículo foi aposto o nome de Retículo Endoplasmático Rugoso (RER). O RER acondiciona temporariamente e faz distribuir as mais diversas proteínas para os seus destinos, em particular o CG. O trânsito destas proteínas faz-se no interior de vesículas que se formam e destacam do retículo, migrando até se fundirem com a membrana da face mais próxima de cada conjunto de sáculos do CG (face de formação). 

Há extensões do Retículo Endoplasmático que não estão estreitamente associadas a ribossomas. Nestes casos, não apresentam um aspeto rugoso, nas observações ao microscópio, pelo que se lhe chama Retículo Endoplasmático Liso (REL). O REL está envolvido na síntese e distribuição de hidratos de carbono, lípidos e hormonas. Também aqui, o “empacotamento” e distribuição de materiais ocorre pela formação e migração de vesículas.

Acontece que todo o retículo de cavidades e sáculos membranares é afinal contínuo entre si e desenvolve-se mais ou menos no interior da célula de acordo com a intensidade do seu metabolismo, num dinamismo constante. Comos antes dito e repetido, o CG “constrói-se” por fusão de vesículas provenientes do retículo, na face de formação dos dictiossomas, e “consome-se” na face oposta (face de formação) num processo de que se originam novas vesículas, as quais se destacam e transportam os materiais sintetizados e preparados para outras regiões da célula ou exportam-nos para o exterior dela - fenómeno de secreção - por exocitose.

Mas não é tudo, as membranas do retículo são uma extensão física da membrana externa do invólucro nuclear (IN). O invólucro nuclear é uma dupla membrana que abriga o material genético, que comanda a célula. Entre as duas membranas há um espaço. E é este espaço intermembranar que se continua pelo interior das cisternas do retículo.

Em resumo: para além da constituição fundamental e da estrutura básica comuns a todas as membranas, há interconversão e continuidade das membranas biológicas das células eucarióticas, desde a membrana mais externa do IN, às cisternas, túbulos e sáculos do RE, a que se segue o CG, passando pelas mais diversas vesículas contidas no citoplasma, até à membrana citoplasmática que delimita a célula. Ao sistema de membranas do interior da célula com estas relações e interconexões chamamos sistema endomembranar (endo = dentro). A ordem pela qual, resumidamente, referimos os seus componentes podia ser a inversa.

Acrescente-se apenas que organitos “semi-autónomos” como o cloroplasto e a mitocôndria não fazem parte do sistema endomembranar, por razões que estudaremos mais tarde.

José Batista d’Ascenção