quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A enorme responsabilidade de fazer manuais escolares

Frequentemente, ao ler matérias que lecciono (no ensino secundário) estremeço (e envergonho-me) com os erros que cometo. Vai longe e está desactualizado (há muito) o que estudei na universidade. Acontece que ser professor de biologia e geologia abarca tal pluralidade de conteúdos, e alguns com tão poucas relações directas, que dificilmente um professor, por mais que leia e estude autonomamente, consegue estar em dia com os conhecimentos mais recentes nas diversas áreas.

Por isso, sempre fui crítico da multiplicação, repetição e predomínio de acções de formação sobre o modo de ensinar em detrimento das de actualização de conhecimentos em domínios em que devia caber às universidades disponibilizá-los, e a que os docentes de cada disciplina deviam ter acesso gratuito ou integralmente subsidiado, em tempo oportuno e compatível.

In: Rui Dias, "Portugal Antes da História", 1º volume "Da Dinâmica Global aos Processos Geológicos"

O mesmo desconforto sinto quando analiso e trabalho com certos manuais escolares adoptados (até com a minha concordância ou mesmo preferência!). E sou crítico tanto em relação às deficiências de conteúdo como no que toca às supostas pedagogias que pressupõem.

Por vezes, vem-me à memória o que ouvia à minha professora de matemática, Amélia Chagas, no que foi o Liceu Nacional de Castelo Branco, em finais da década de 70 do século passado, no que então se chamava ensino complementar (hoje ensino secundário): os manuais do ensino secundário deviam ser feitos pelos professores do ensino superior, podendo os (dos anos finais) do ensino básico ser elaborados por professores do ensino secundário. O argumento radicava na convicção de que os professores de cada nível sabem bem quais são as bases que julgam (mais) necessárias ao início do ciclo de estudos em que trabalham. A esta ideia não faltam obstáculos de concretização, mas não pode apontar-se-lhe falta de lógica.

Outra possibilidade seria o ministério da educação propor a professores de diferentes departamentos universitários ou outros, de méritos reconhecidos, a elaboração de materiais pedagógicos, incluindo livros, textos de apoio e/ou exercícios, relativos às rubricas dos programas das disciplinas de ciências, como em tempos (já em democracia) houve. No mínimo conseguia-se uma base de qualidade isenta de erros grosseiros, facilitadora da aprendizagem e da acção dos professores. Esse trabalho já é generosamente feito, de modo inteiramente grátis, por pessoas como os Professores Galopim de Carvalho e Jorge Paiva. Outros, como o Professor Rui Dias publicam livros essencialmente para professores. Nada se perdia em tornar esse serviço mais definido e sistemático, recompensando devidamenre os seus autores.

José Batista d’Ascenção

domingo, 13 de novembro de 2022

A nossa língua e o ensino

Na aula (sobre expansão dos fundos oceânicos) calculávamos a velocidade de afastamento de dois pontos situados em placas litosféricas diferentes (por exemplo nas ilhas das Flores e da Graciosa, nos Açores), em movimento (geológico) divergente, e de cada um dos pontos em relação à origem da deslocação, a meio da distância entre os dois (na zona de rifte).

Para esquematização dividimos o quadro ao alto, a meio, e proponho que titulássemos:

- à esquerda: se considerarmos a velocidade de afastamento de qualquer dos pontos em relação ao rifte;

- e à direita: se considerarmos a velocidade de afastamento das ilhas uma em relação à outra.

A aluna, no quadro, escreve: «se considerar-mos…»

Nenhum dos alunos dá por nada. A minha cara deve ter sido de poucos amigos, pelo que a menina, hesitante, pergunta:

- Setôr, «considerarmos» existe?, não deve ser «consideramos»?

Repliquei: se eu considerar, se tu considerares, se ele considerar, se nós considerarmos… etc.

E insisto: - Isto diz-lhes alguma coisa?

Mutismo.

Mando então que seja eliminado o hífen.

E logo um rapaz muito vivo, lá ao fundo:

- Mas então, não tem que ter tracinho?

Sai-me, num grito: - Burro!

Nunca na minha vida tinha dito tal coisa a um aluno. Além do mais, a minha expressão era tão dolorosa e revoltada, quando falha de objectividade. E logo o reconheci.

Para minha surpresa, o rapaz sorri abertamente e faz questão de dizer:

- Não há problema nenhum.

Resta acrescentar que nem aquele aluno nem a generalidade dos alunos daquela turma (de 10º ano), incluindo a menina que estava no quadro, têm falta de inteligência. Nem de simpatia nem de boa educação, já agora.

A desgraça vem do estado a que a «escola» chegou, qual seja a de que muitos alunos não percebem o que os professores dizem, nem entendem o (pouco) que lêem.

Curiosamente, ainda há poucas horas ouvi o novel líder do PCP afirmar, no início do seu primeiro discurso, que, «se dúvidas houvessem»… (sic), e referir, pouco depois, que as crianças têm direito a ser felizes e a aprender…

Lá direito têm. Ou deviam ter.

José Batista d’Ascenção