quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Inconveniências pedagógicas em tempo de Natal.

Este é um texto que ninguém deve ler, sob pena de se indispor. Desculpem qualquer coisinha…
Imagem obtida aqui.

Tais estão as coisas que há alunos que encaram a possibilidade de copiar como se fora um direito.
Este ano lectivo dois dos meus alunos ficaram perplexos porque no local da classificação de um teste, tinham uma chamada para uma nota à margem, em que o professor registava a sua falta de confiança na prestação dos alunos em causa e pedia a assinatura dos respectivos encarregados de educação, como prova de que tomavam conhecimento. Essa nota havia sido aposta no cumprimento específico de certo ponto dos critérios de avaliação. O efeito terá sido tão profundo que um dos alunos quis afirmar, de sua iniciativa, perante os restantes, na altura e em ocasião posterior, que dali em diante promete ser honesto quando realizar testes. Pareceu-me tão (comoventemente) sincero em cada uma das vezes, que tive (e tenho) receio de que possa (vir a) ser visto pelos outros como um caso exótico, se não mesmo aberrante.
Também tenho tido, ao longo dos anos, alunos que fazem saber (mais recentemente de forma indirecta…) de modo, nuns casos, discreto e noutros ostensivamente, legitimando a interpretação de que que constitua aviso, chantagem ou vingança, que vão mudar de escola porque querem ter «melhores notas». Não se conhece aluno que diga que vai mudar de escola porque quer aprender mais ou melhor, mas porque quer ter «melhores notas».
Há também casos de alunos que, tendo-se transferido para escolas públicas, no 11º ano, apresentam quedas de classificações que podem ser de 18 para 9 ou de 16 para 8, em disciplinas tão díspares como inglês ou biologia e geologia, em que não é difícil aquilatar com algum rigor e uniformidade o que um aluno sabe ou ignora. Refira-se que não se trata de meros casos pontuais, pelo que não é legítimo que alguém se sinta «retratado» em particular. Nem se pense, também, que o mal que grassa é exclusivo de escolas privadas. Na realidade, a pecha alastra pelas escolas públicas em hipotética (mais imaginária que real?) e infeliz competição (em idas e vindas que anulam os efeitos pretendidos?) pela angariação de alunos.
Ora, compete ao Ministério da Educação e aos serviços de inspecção analisarem a matéria e sobre ela tomarem as decisões que se imponham. E ajudaria que os especialistas que se pronunciam sobre os assuntos do ensino, alguns sendo ex-ministros da pasta, não receassem o tema, fizessem luz sobre o mesmo e possibilitassem as melhores e mais justas soluções. Pela minha parte, sem ser exaustivo, há perguntas que não deixo de colocar:
- Que uniformidade existe (ou que nível de discrepância é aceitável) na avaliação dos alunos do todo nacional, incluindo escolas públicas e privadas, especialmente no ensino secundário, afectando, sobretudo, o acesso ao ensino superior?
- Com que objectivos devem ser elaborados os exames nacionais (pelo menos os da disciplina de biologia e geologia): para avaliar a qualidade das aprendizagens sobre as matérias dos programas ou para garrotar o ingresso em certos cursos do ensino universitário?
- Assegurada a resposta às questões anteriores, e perante tantas estatísticas disponibilizadas, que ilações se tiram e que medidas se tomam face à comparação da média das classificações internas com a média das classificações obtidas em exames nacionais, nos casos exageradamente discrepantes?
- Qual é o grau de eficácia na manutenção do sigilo relativo ao conteúdo dos exames nacionais até ao momento da sua realização?
- Qual é o grau de eficácia no controlo rigoroso das condições de execução dos exames nacionais em todas e em cada uma das escolas?
Se não assegurarmos condições de justiça no sistema educativo não podemos esperar melhor imagem do que aquela que resulta da acção de certos protagonistas da política e da governação, que tratam da sua vidinha, sem que lhes seja aplicada qualquer penalização. Ou de instituições que deviam ser exemplares, sejam as militares (estou a pensar no incrível caso de Tancos), sejam as de (suposta) solidariedade nacional (pense-se no famigerado caso «Raríssimas»). Ou de certas sentenças recentes do sistema de justiça. Ou da acção (até à data) inexistente da «protecção civil» em matéria de prevenção de incêndios florestais. Etc., etc..
Este texto viu a luz do dia depois de ter tomado conhecimento de um conselho de turma em que os representantes dos encarregados de educação se esforçaram «diplomaticamente» para que certo docente (que não é o autor destas linhas) passe a reflectir e ponderar sobre as suas classificações, «atendendo ao contexto, ao que se passa a nível nacional e à circunstância de um simples ponto poder fazer a diferença no futuro dos alunos», ao que o visado respondeu apelando a que os pais e todos os cidadãos levantem a voz contra a proliferação de classificações mentirosas sobre o conhecimento e capacidades dos alunos, enganando-os, enganando os seus pais e causando injustiças em série. E não se tratava, no entender daquele professor, de reprovar os alunos em massa, nada disso, tratava-se, tão-somente, de realizar um trabalho decente e justamente avaliado.
Ter-se-ão calado, aqueles pais, mas ninguém crê que tenham ficado convencidos.
Afinal, que sociedade queremos?

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

DÉFICE NA EDUCAÇÃO

Texto amavelmente cedido pelo Professor Galopim de Carvalho, que aqui se publica com sentida gratidão.

No passado dia 3, o Primeiro Ministro, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto, disse, preto no branco:
“De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.
Dito, creio que de improviso, o que está no pensamento de António Costa, veio ao encontro do que ando a dizer há muitos anos.
Num país, como Portugal, onde a investigação científica e o ensino superior, em todas as áreas do conhecimento, está ao nível do que caracteriza os países mais avançados, é confrangedor assistir à generalizada iliteracia dos portugueses, incluindo muitos dos nossos quadros superiores, intelectuais de serviço e políticos de profissão que, embora conhecedores dos domínios em que se movimentam, são falhos de outras culturas, em particular da científica, que a escola deveria dar mas não deu, como está implícito nas palavras do Primeiro Ministro.
Sou levado a pensar, e não estou só nesta ideia, que grande parte da situação vinda agora, bem ao de cima nas ditas palavras, radica, desde há muito e em grande parte, na “máquina” do Ministério da Educação. Os ministros e secretários de estado, uns com ideias, outros sem elas, têm-se seguido ao sabor das legislaturas e das remodelações. Foram entrando, ignorando muitas das disposições dos que os antecederam, criando outras e desaparecendo de cena, dando lugar a novos outros, em repetição deste desgraçado ciclo. Mas a “máquina”, essa, praticamente, não muda e é essa, quanto a mim, uma das responsáveis pelo défice agora denunciado por António Costa.
Outra parte da responsabilidade desta triste e lamentável situação cabe aos sucessivos chefes de governo que, mais preocupados com outros sectores da administração, dividendos políticos e outras aberrações dos aparelhos partidários instalados, têm descurado este gravíssimo problema, dito agora nas suas palavras como primeiro ministro: “défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.
É urgente olhar para a realidade do nosso ensino e é preciso vontade política para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação desta máquina ministerial despida de constrangimentos mais partidários do que políticos 
É preciso e urgente que o Ministério da Educação se torne numa das principais preocupações dos governos, não só na escolha dos respectivos titulares, como nas dotações orçamentais que permitam dar às escolas as necessárias condições de trabalho e de relativa autonomia e, aos professores, a dignidade compatível com o importantíssimo papel que representam na sociedade, a começar nos respectivos vencimentos.
É preciso e urgente que o Ministério da Educação chame a si um conjunto de bons professores e outros profissionais capazes de proceder à necessária e profunda revisão de tudo o que se relacione com o ensino básico e secundário, a começar na conveniente e eficaz formação de professores, reformulação de programas passando pelos livros e outros manuais adoptados (que envolvem interesses instalados) com discursos estereotipados que se repetem acriticamente em obediência a esses programas, levando ou, melhor, obrigando os professores, não a ensinar e formar cidadãos, mas a “amestrar” alunos a acertar nos questionários de exames, por vezes, autênticas charadas.
Sempre disse e insisto em dizer que o professor deve saber muito, mas muito mais do que o estipulado no programa da disciplina que deve ter por missão ensinar. Não pode, de maneira nenhuma, ser um mero transmissor das noções, tantas vezes, insisto em dizer, estereotipadas e acríticas dos manuais de ensino.
Esse muito mais está na abrangência dos seus conhecimentos, não necessariamente especializados ou de ponta (indispensáveis no ensino superior), mas ao nível de uma sólida cultura científica e humanística. E isso vem de trás, da formação cívica que adquiriu, do modo como passou pela universidade e do proveito que tirou desse privilégio, numa sociedade plena de desigualdades como tem sido a nossa. Mas esses conhecimentos, todos sabemos, estão ao seu alcance nas hoje muito boas bibliotecas das escolas e, agora mais do que nunca, na inesgotável, imediata e acessível via “on line”. 
Para tal, os professores necessitam de tempo, e tempo é coisa que os professores não têm. Há que libertá-los de, praticamente, todas as tarefas que não sejam as de ensinar. Há que resolver o problema das suas colocações, com vidas insuportáveis material e emocionalmente, a dezenas de quilómetros de casa, separados das famílias.
Se nada disto for iniciado por este governo, as palavras de António Costa que, estou certo, terão todo o apoio dos PCP; BE e PEV, não passarão disso mesmo.
O sistema social e político dominante na sociedade capitalista que domina na União Europeia, continua a promover e alargar o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. Transmitir esta mensagem aos jovens é um dever moral e cívico dos professores, essencial na luta contra o insucesso escolar e pelo direito a uma condição humana de maior dignidade. Não é fácil, mas não é impossível esta tarefa. Há que saber ganhar a confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que goste da convivência com o seu professor. Essa relação é decisiva na sua atitude face à escola e ao gosto de aprender. Duplamente feliz se o professor estiver à altura do seu papel que, para além de educacional, é, sobretudo, social.

A. M. Galopim de Carvalho

Afixado por: José Batista d'Ascenção

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Dificuldade artificial (e intencional?) dos exames nacionais (ou de alguns deles?) como meio de angariação de fundos?

Hoje, um aluno interessado procurou-me para que lhe explicasse o conteúdo de uma solução de um exercício do livro «BIOLOGIA E GEOLOGIA, Questões de Exames Nacionais e de Testes Intermédios 2006-2017 (10º e 11º anos)», o qual tem escrito, bem visível na capa e na lombada, «Edição 2018», embora a 1ª edição seja de Outubro de 2017, uma sugestiva (e criativa!) ideia de actualização e antecipação…
Na contracapa está escrito que «Os conteúdos estão organizados de forma a permitir ao aluno dirigir o seu estudo para os temas e as unidades do programa».
Nada tenho contra as estratégias de negócio que, de forma transparente, prestem serviços úteis e de qualidade, particularmente se destinados à formação dos jovens. Mas defendo que é na Escola e com a ajuda e as explicações dos professores dos próprios alunos que eles devem ficar minimamente preparados sobre as matérias a aprender. Têm direito a isso, sem gastos por fora. E não compreendo como programas tão mal estruturados e articulados e desactualizados, de que talvez o pior exemplo seja o de Biologia de 10º ano, que mais parece ter sido concebido para impedir que os alunos aprendam e que os professores consigam ensiná-los,  permaneçam intocados, anos e anos, sem perspectivas de qualquer revisão. Revisão mais premente e necessária ainda face às sugestões e recomendações metodológicas neles contidas, as quais apontam explicitamente e invariavelmente no sentido da simplificação e da facilitação dos conteúdos. É tanto assim que os manuais em uso, feitos de acordo com os programas, insistem, em todos os exercícios que propõem, em questões muito simples, tão simples que, não raro, chegam ao ponto de serem insultuosas para a inteligência dos alunos. E não há no mercado manuais da disciplina com outra visão dos programas, todos eles, aliás, devidamente autorizados pelo Ministério da Educação.
No oposto surgem os exames nacionais de Biologia e Geologia, em desconformidade com os programas (absurda e escandalosamente desactualizados) a exigir um grau de conhecimentos, abrangência e capacidade de relacionação que só por milagre seria possível os alunos atingirem nas condições da nossa escolaridade (deixo agora de lado os erros dos próprios exames…).
Quando (eu) ensino quero e preciso saber quais são as referências e as balizas. De outro modo, saltando do programa para «tudo» o que com ele se relaciona ou aprofundando-o para além do que estipula, navego no escuro, arriscando-me a cumpri-lo mal e a não acertar no que vai sair nos exames. Por outro lado, recuso-me a «amestrar» alunos para os exames (vulgo «treinar macacos»), pelo que a minha função fica muito dificultada. E para grande parte dos alunos, a situação que existe redunda numa frustração tão cruel como desnecessária, causa de aversão (ou mesmo de ódio) actualmente e no futuro às ciências naturais.
Donde não se perceberem os objectivos. Para os professores, tão importante como a definição clara do que devem ensinar é a formação e actualização de que sempre precisam (e que não têm tido – por exemplo, eu não quero formação, aliás, inútil, para classificar exames, eu preciso dela para ensinar melhor os alunos). Na mesma linha, os alunos precisam de saber o que têm que aprender e têm todo o direito a serem bem ensinados.
Se entre os objectivos está a perspectiva de fazer negócio com a aflição dos alunos, então esses fins são ilegítimos e compete-nos tomar sobre eles uma posição de rejeição.
É o que devíamos ter feito quando o presidente do conselho científico do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) afirmou, como o fez João Paulo Leal, em Coimbra, em 16 de Maio de 2015 (conforme notícia do jornal «Público» de 17 de Maio de 2015, página 12), «que se podem promover resultados, em média, mais altos ou mais baixos, alterando simplesmente as cotações dos vários itens [questões] ou, então, uma ou duas questões em todo o exame. (…) a Português, por exemplo, se quero que haja notas altas é muito fácil. Pego numa ou em duas perguntas, substituo-as por outras, aparentemente semelhantes, e a minha expectativa em relação aos resultados dá um salto de cinco valores… Não é segredo para ninguém que as equipas do Iave que realizam os exames fazem uma estimativa de que resultados, em média, cada exame vai ter: Com uma diferença de mais um menos em valor em vinte, acertam em 95% dos casos, aquelas equipas conseguem fazer um exame para a nota que querem».
E depois disto, passados dois anos e meio, nada aconteceu. Tudo como dantes. Dá para entender?

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Desventuras do exercício da docência

Ele há coisas! Hoje, chegado à escola atempadamente, à hora habitual (oito e pouco), com as aulas preparadas para toda a manhã (juro!) passei sem saber como a funcionar como se fora quarta-feira, dia em que os primeiros noventa minutos da manhã são destinados àquelas horas em que estamos acorrentados à escola, mesmo quando temos muito que fazer e não é possível fazê-lo lá. E então sentei-me, puxei de um caderno e vá de ocupar o tempo, enquanto aguardava pela colega com quem, às quartas, costumo trabalhar na «estufa». E ela que se atrasava! Deu o segundo toque e eu à espera. Até que toca o telefone (da sala de professores). Como só estava eu e uma outra colega, ainda lhe disse: «nem vale a pena atender, não deve ser a nenhum de nós que procuram». 
Mas ela atendeu. Chamavam por um tal professor José Batista. Como? Só então caí em mim. A D. Fátima, habituada aos registos de assiduidade, tinha pedido aos alunos para esperarem. Eles próprios achavam estranho o professor não ter subido. E esperaram. Esperaram todos o tempo necessário (mais de 10 minutos, o tempo de tolerância às 08.20h). Nenhum mostrou qualquer hesitação ou má vontade. São assim aqueles miúdos do 11º E da ESCA. Por isso gosto tanto deles, desde que os tenho como alunos.
Algo envergonhado e acabrunhado, pedi-lhes sincera desculpa. E fiquei sensibilizado com a doçura serena deles e a disponibilidade para a aula, que hoje se estendia por 135 minutos! Com alunos diferentes podia não ser assim.
Já a D. Fátima não pode imaginar a estima e o carinho em que a tenho.
Agora mesmo ainda me sinto estranho. Mas faço esforço para ver os aspectos bonitos e generosos associados uma situação indesejável, e tento minimizar algum sinal de decrepitude própria que espero que não se torne demasiado frequente.
Um grande obrigado.

José Batista d’Ascenção

O cumprimento do dever e vogar do pensamento no tempo infinito da vigilância de um teste

Toca a campainha e o professor segue para a sala. À porta, concentrados, os alunos estão nervosos. Perguntam se o teste é fácil, mais fácil do que o anterior, e o professor diz-lhes que sim. Entrados na sala, depressa ocupam os seus lugares. Alguns dispõem ou acondicionam os seus amuletos; há quem insista na pergunta sobre se o teste é fácil. O professor recomenda concentração e muita calma, diz que o tempo é mais do que suficiente e pede o favor de ser alertado para alguma gralha no enunciado, que é feito em duas versões, com perguntas exactamente iguais mas com a ordem das opções ou das sequências ou das correspondências trocadas. É uma trabalheira montar testes assim, mas é necessário por três motivos principais: seguir o modelo do exame nacional, obviar a impossibilidade de separar fisicamente os alunos, devido às dimensões das salas de aula e ao tipo de mobiliário, e conseguir classificações mais objectivas.
Distribuídos os enunciados, cai o silêncio na sala, só quebrado por algum folhear mais nervoso das 8-9 páginas do teste, em leitura (eventualmente saltatória) dos textos introdutórios e respectivas questões ou por algum pedido de esclarecimento do significado de palavras comuns, mas afastadas do léxico dos jovens…
É então que o professor pode pousar silenciosamente o olhar os alunos, enquanto eles se aplicam. Há os que sabem e esses prosseguem firmes na resolução; há os que hesitam, mas insistem e fazem alguma coisa, e há também os que, cedo, olham vagamente o tampo da mesa, o fundo da sala ou o tecto, em atitude flácida que, por vezes, disfarçam, se o professor faz incidir neles a sua atenção.
Nestas alturas, em que é preciso realmente vigiar os alunos, porque alguns – não poucos - só a muito custo respeitam as regras do trabalho honesto e… estritamente pessoal, o professor pode ser tomado por várias sensações e reflexões, como sejam:
- sentir-se à prova, e também ele examinado, uma vez que é o líder de uma equipa – a turma – cujos resultados dependem da sua acção pedagógica e didáctica e da adequação do teste que aplica e de que é responsável;
- tentar colocar-se na pele de um ou outro aluno, recordando, eventualmente, os tempos em que também o foi e partilhar (reviver…) a angústia de quem sabe mas está nervoso, o medo ou a dor de quem sabe pouco mas até se esforçou e não entende bem o formulado das questões, a tristeza e desgosto dos que desacreditam de si e não se acham à altura por alguma espécie de condição limitativa pessoal, quem sabe se imaginária, e também a revolta ou desafio dos que mal suportam o mundo dos adultos, dos pais, dos professores e da escola e parecem enquistados em não ligar a uns e a outros, quase intencionalmente refractários à aproximação e às tentativas de quem gostaria de os cativar;
- pensar sobre tantos absurdos da escola: as políticas, os interesses, as condições internas de funcionamento, face às características sócio-económicas e afectivas dos alunos e das suas famílias e à conveniência e eficácia e razoabilidade da vida em comunidade;
- reflectir sobre o que é a vida dos docentes e a sua vida em particular, com as suas idiossincrasias, as suas circunstâncias, os seus desejos e as suas possibilidades…
A dada altura, é ainda possível que o professor, muito mais do que os alunos, espere ansiosamente pelo toque de saída.
Se a sessão chegar ao fim e houver uma boa parte dos alunos a manifestar satisfação e alívio, e nenhum deles parecer destroçado, o professor pode então sentir um reconfortante bem-estar, mas não é isso o que muitas vezes acontece.
A ingrata tarefa de elaborar os testes nos moldes referidos (mesmo tirando questões daqui e dali) e a «penitência» de os «corrigir» são um outro «calvário», talvez uma forma de «tpc recorrente para o docente», de cujas exigências só o próprio e a sua família directa têm uma noção exacta.

Nota adicional: este texto é (apenas) um registo, não é um queixume e foi rascunhado à mão, de pé, entre os alunos de uma turma durante a vigilância de um teste.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Não fiz greve

Portugal tem uma volumosa dívida, superior a 130% de tudo o que produzimos num ano.
A solidez da economia do país é uma ficção com que, muitas vezes, gostamos de nos iludir.
Nos meses do Verão e do Outono deste ano, as florestas de Portugal arderam, tornando-nos mais pobres, agora e por muito tempo, no futuro.
E no entanto:
Os juízes – sim, os juízes, que são órgãos de soberania! – ameaçaram fazer greve;
Os enfermeiros fizeram greve;
Os médicos fizeram greve;
Os professores do ensino básico e secundário fizeram greve.
Todos exerceram um direito, todos reclamaram das condições do seu trabalho, e fizeram muito bem. Mas pôr a tónica em auferir mais rendimentos?
Eu não vejo como seria possível satisfazer tantas reivindicações sobre aumento de retribuições salariais. Recorrendo a mais empréstimos? Fazendo mais dívida?
Não que eu esteja contente com as condições de funcionamento das escolas. Não estou. E muito poderia ser melhorado, sem passar pelo aumento de despesa pública.
Mas no passado dia 15 não fiz greve.

José Batista d’Ascenção

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Dia a dia: pequenas coisas que significam muito ou a acta de um caso sem história

Imagem obtida aqui
Diz-se que há dias em que uma pessoa não deve sair à rua. Do mesmo modo, poderia dizer-se que há dias em que uma pessoa não deve ficar em casa. Significam uma e outra afirmação que há alturas em que algo que corre mal funciona como o primeiro de uma sucessão de acontecimentos maus. Talvez isto tenha alguma relação com a chamada «lei de Murphy» (se alguma coisa pode dar errado, ela dará errado), que alguém explicava assim: se uma torrada com manteiga de um dos lados cair ao chão, ela cairá com a superfície barrada virada para baixo!
Passemos ao meu desabafo (sobre o qual – propositadamente – deixei transcorrer uns dias): Na sexta-feira passada tinha combinado que, ao fim da manhã, sairia da escola, ia rapidinho levantar dinheiro, passava na bomba para meter gasolina e apanhava a Lurdes, para irmos almoçar a hora boa, por forma a ocuparmos a tarde de acordo com a programação usual. Nesse dia, a manhã de aulas não foi empolgante, mas correu bem (pelo menos em comparação com o tempo imediatamente a seguir…). Chuviscava, ao dirigir-me para o carro. Quando me aproximava, vi uma roda da frente em baixo e surgiu o primeiro contratempo. Um telefonema rápido, a pedir 15-20 minutos, a reflexão mental sobre o que era preciso fazer, casaco fora, mangas arregaçadas, macaco, chave de «porcas» e a roda sobressalente arrancados do fundo da mala. Com umas pinguinhas sobre o dorso, elevei o carro, desaparafusei a roda e vá de puxá-la, puxá-la e voltar a puxá-la. Umas pancadas com o punho, novos puxões, o carro abanava, mas a roda não saía. E eu não percebia porquê.
Solícita, a minha colega Goreti Mota, que se dirigia para o carro dela para, como eu, ir almoçar, aproximou-se e... apiedou-se. Tentou abrigar-me dos pingos de chuva. Ouviu a minha queixa sobre o comportamento imprevisto daquela roda. Expedita, disse-me que ia pedir ajuda ao Sr Silva, o chefe dos funcionários. Eu, com as mãos miseravelmente pretas continuava, perplexo, a tentar entender aquela roda que não «dialogava» comigo. Comigo, que uns anos antes tinha mudado uma roda daquele carro sem problemas… Chegou o Sr Silva, olhou, deu uns puxões, ergueu-se e de costas para a roda aplicou-lhe umas pancadas fortes e secas com o calcanhar. E a roda cedeu.
Alívio. Porque o Sr Silva sofre da coluna, recomendava-lhe algum cuidado e, satisfeito, tratei logo de me adiantar para ser eu a meter a roda de reserva: em «três breves» a apertei e de imediato desci o macaco, que desceu, desceu, desceu, até revelar um pneu, também ele, em baixo! Grande azar: pneu sobressalente vazio ou também furado? Palpite do Sr Silva: vazio por perda de ar, lentamente, ao longo de muito tempo. Conferia: o carro tem quase 18 anos (ainda é jovem, portanto…) e só uma vez, que me lembrasse, tinha havido um furo. Mas para o caso pouco interessava: agora tinha um carro com apenas 3 rodas e faltava a quarta… Sugestão imediata da Goreti: ela telefonava a dizer a quem a esperava para almoçar que tinha que demorar um pouco mais, metíamos as duas rodas no jipe dela e íamos tão rapidamente quanto possível a uma estação de serviço próxima arranjar pelo menos uma delas e voltávamos ao (meu) carro em pouco tempo. E se bem o disse, depressa tomou a iniciativa. O Sr Silva ainda foi comigo aos WC abrir-me porta e a torneira para eu poder lavar as mãos, voltou ao seu serviço e eu segui, grato e confortado, no jipe da Goreti que nos levou rapidamente à tal estação. Ali, serviço atencioso, rápido e eficiente: cheio o pneu de reserva e mergulhado na água, não tinha furo nenhum - muito bem; extraído o parafuso que furara o outro, o técnico rapidamente passou à acção e em poucos minutos reparava o pneu e enchia-o. Já o trabalho estava quase feito, lembrei-me que era minha intenção ir buscar dinheiro antes de ir meter gasolina, ou seja: não tinha nenhum comigo. E disse-o, pensando alto. Rapidamente, a Goreti sossegou-me: «não te preocupes, eu tenho dinheiro». Aliviei e, momentaneamente, pensei em pedir-lhe que se fosse logo, eu ia levantar dinheiro por ali próximo, chamava um táxi que me levaria para a Escola, a mim e às duas rodas, e lá me amanhava. Porém, lembrei-me que do portão da escola até ao meu carro era uma certa distância, com uma rampa de forte inclinação ao longo de 25 ou 30 metros pelo meio onde, àquela hora, circulavam outros carros, o que esfriou a minha ideia. Mas a Goreti não manifestava qualquer pressa (que eu sabia que tinha que ter). Felizmente, a conta foi tirada em dispositivo multibanco, pelo pude ser eu a pagar. Nova vitória. E ainda encontrei uma moeda de 2 euros que meti na mão do senhor que arranjou as rodas (com pena de não ter um pouco mais… e admitindo que ele não imaginasse que era todo o dinheiro que tinha comigo…).
Regressados ao meu carro, sobre três rodas e um macaco, exigi à Goreti que se fosse embora, sentidamente agradecido, e também satisfeito com a generosidade e a calma daquela minha querida Colega. Sentia-me agora forte e confiante e encorajado, não pelos meus méritos, mas pela atitude tão bonita e útil da minha amiga.
Mudei a roda num rápido. E fui, também eu, almoçar. A caminho e depois não podia deixar de imaginar: um percalço, outro e outro; um aborrecimento, multiplicado por três, mas também provas de atenção, interajuda e disponibilidade elevadas à potência daquele produto de factores.
Não que eu precisasse de tais provas, porque conheço a pessoa e a profissional que a Goreti sempre foi e é, assim como a capacidade e a eficácia do Sr Silva, mas porque é sempre bom sermos confrontados (e confortados) com evidências desta natureza.
Obrigado, Goreti.
Obrigado, Sr Silva.

José Batista d’Ascenção