Por A. M. Galopim de Carvalho
Apresentação de um projecto
Era sempre ao fim da tarde, no grande Jardim Zoológico.
Nos meses em que os dias são mais compridos, entre o fechar dos portões e a hora em que o sono os transportava para a manhã seguinte, o mocho, a pega e o papagaio tinham artes de sair das prisões de rede, onde passavam a maior parte do seu tempo, para se juntarem em animadas conversas.
O local de reunião era um daqueles recantos destinados às merendas dos visitantes que preferem comer ali o farnel que traziam de casa. Os restaurantes são caros e só os mais endinheirados é que aqui satisfaziam o apetite, sempre muito, nestas visitas. Um pouco afastados do bulício, estes locais, com mesas e bancos de pedra à disposição do público, tinham para estas aves o atractivo de, ao fim de um dia de visitas, ficarem cheios de restos de comida, não só nos contentores ali colocados para os receber, como descuidadamente deixados sobre as mesas ou caídos no chão.
Ali reunidos, o mocho, a pega e o papagaio não estavam sós. Tinham uma audiência variada, em que havia melros, pombos, pardais frequentadores do mesmo jardim, mas gozando do privilégio de serem livres. Faziam ali os seus ninhos e tocas, nas muitas árvores à sua disposição, não lhes faltava comida e podiam sair se e quando quisessem. Também eles poderiam escolher a liberdade e transpor os muros que os isolavam da cidade. Tinham asas, era fácil fazê-lo. Mas o problema era o das refeições que, ali, tinham sempre a horas certas. Não eram como os pombos, os melros e os pardais, há muito adaptados à vida urbana. Além das aves, também ali apareciam, em busca dos já referidos restos de comida, esquilos, lagartos, lagartixas e, até, uma toupeira.
Apanágio da sua espécie, o mocho desta ficção é uma ave muito inteligente, lê tudo o que seja livros de divulgação científica. Tem um interesse muito especial pelas ciências da Terra, fala com propriedade do muito que sabe e, como um professor que se preza, gosta de ensinar. A pega e o papagaio não lhe ficam atrás em dotes intelectuais. Ela lê muito menos, gosta mais de aprender pela experiência e ouvindo falar quem sabe. Ele, praticamente, não lê mas não pára de falar. Fala, fala, fala mesmo daquilo que não sabe. Foi assim que a natureza o criou em terras do Brasil. Tem muito respeito pela sabedoria do mocho e ouve-o sempre com muita atenção e interesse.
- O meu nome vulgar é mocho-galego, mas os cientistas referem-se a mim pelo meu nome em latim, Athene noctua (Scopoli, 1769) – Começou esta ave a conversa com os seus companheiros. - Sou um animal nocturno mas gosto de observar o crepúsculo.
- O crepúsculo? O que é isso? – Perguntou, de imediato, o papagaio.
- O crepúsculo – adiantou-se a pega – é este lento escurecer do fim do dia e do começo da noite.
- Continuando, – retomou o mocho a sua apresentação - sou um dos muitos representantes da fauna portuguesa e os meus semelhantes estendem-se pela Europa, grande parte da Ásia e pelo Norte de África. Alimento-me da bicharada que consigo apanhar, entre insectos, lagartixas, pequenas cobras, outros passarinhos e ratinhos do campo. Só falta dizer que a minha espécie faz os seus ninhos em tocas nas árvores, em rochedos ou, se for preciso, num velho edifício abandonado e em ruínas.
- Eu sou a pega-rabuda. Sou aparentada com os corvos, mas mais pequena. E tenho estas manchas brancas no peito e nas asas que me distinguem deles, que são todos pretos como o carvão. A minha espécie tem a mesma distribuição geográfica que a do nosso amigo mocho e, além disso, ocupa ainda a parte ocidental da América do Norte.
- Mas também tens nome científico. – Interrompeu o mocho.
- Claro que tenho. Chamo-me Pica pica (Lineu, 1758) e, calcula tu, que pelo facto de eu comer de tudo, dá-se o nome de “pica” a uma doença que refere o comportamento anormal de certas pessoas que comem coisas que não são de comer.
- Quando dizes que comes de tudo, que tudo é esse? – Perguntou o papagaio.
- É muita coisa. São insectos, ratinhos do campo, ovos que procuro nos ninhos de outras aves, sementes de cereais e outros alimentos de origem vegetal. Vivemos, de preferência em zonas agrícolas, mas também em parques e jardins como este. E tu? - Virou-se ela para o papagaio. – Também tens nome em latim?
- Claro que tenho. Sou o Amazona aestiva (Lineu, 1758) fui trazido da Amazónia, no Brasil, e sou conhecido em todo o mundo porque posso aprender a falar como as pessoas.
- E tu sabes quem é que te deu esse nome? – Interrompeu o mocho.
- Não faço ideia, mas gostava de saber. E também gostava de saber porque é que tenho de ter um nome em latim
- Este teu nome, o da pega e os de uma grande quantidade de animais e plantas foram dados por um naturalista e médico sueco do século XVIII, de nome Carl von Linné, muito citado nas escolas portuguesas por Lineu, o seu nome dito e escrito em português.
O meu foi proposto pelo naturalista e médico italiano, do século XVIII, Giovanni Antonio Scopoli.
- Dizem-se naturalistas, porque estudavam ciências naturais. - Acrescentou a pega, toda interessada na conversa.
- Sim, mas das ciências naturais só se interessou verdadeiramente pela botânica e pela zoologia. – Continuou o mocho. - Como era hábito entre os cientistas desse tempo, os resultados dos seus estudos eram apresentados em textos eruditos, geralmente escritos em latim e até o seu próprio nome tinha uma versão na língua clássica dos romanos. É por isso que aparece muitas vezes referido como Carolus Linnaeus.
- Lineu – adiantou-se a pega – é considerado o pai da taxonomia e da nomenclatura binomial de plantas e animais ainda em uso.
- Espera lá. – Interrompeu o papagaio, aflito com tantos nomes desconhecidos. – Explica lá o significado desses palavrões.
- Taxonomia é uma palavra erudita, de origem grega, que quer dizer classificação. Pensa no nosso caso, todos os três somos seres vivos. Certo? De entre os seres vivos somos animais, não somos vegetais, que são um outro grande grupo. Entre os animais há os vertebrados e os invertebrados. Nós somos vertebrados e diz-se assim porque temos vértebras. Os invertebrados são os insectos e as aranhas os caracóis e muitos outros. Estás a seguir o raciocínio?
- Sim, podes continuar.
Em linhas muito gerais, posso dizer que no grupo dos vertebrados estão os peixes, os batráquios, os répteis, as aves, que somos nós, e os mamíferos, cinco grandes grupos ou classes, como é mais correcto dizer. Todas as classes se dividem em ordens, as ordens em famílias, as famílias em géneros e os géneros em espécies. Nós pertencemos à mesma classe mas somos de famílias e géneros diferentes. Eu sou da família Corvidae e do género Pica, tu és da família Psittacidae e do género Amazona e aqui o nosso amigo mocho, é da família Strigidae e do género Athene. Não interessa que decores estes nomes, Só os cito para exemplificar o que expliquei sobre a taxonomia.
- E nomenclatura binomial? O que é isso?
- Nomenclatura binomial é o conjunto de normas que regulam a atribuição de nomes científicos às espécies de animais e plantas. Diz-se binominal porque, como o termo indica, cada espécie é identificada por dois nomes: o nome do género seguido do que designa a espécie. O meu nome completo é Pica pica, o teu é Amazona aestiva e o deste nosso mestre é Athene noctua.
Feita a apresentação dos três principais protagonistas desta ficção, iremos conhecer, em próximos textos, as conversas que travam entre si e com os seus interessados espectadores.
Afixado por José Batista d'Ascenção
Sem comentários:
Enviar um comentário