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Há não muitos dias ouvia nas notícias da rádio referência enfática à descoberta de «uma enzima que come plástico». Do mesmo conteúdo, nos mesmos termos, me inteirei em letra de imprensa numa das revistas semanais portuguesas de maior divulgação, onde se escreve que a enzima descoberta consegue «ingerir PET, a sigla para polietileno tereftalato».
Convinha, porém, que nas notícias se fizesse uso de linguagem precisa e rigorosa, sendo que, neste e noutros casos, os cientistas contribuem largamente para a confusão, não sei se por também entre eles haver falhas no domínio da língua materna. A estes problemas podem acrescer dificuldades de tradução a partir de línguas estrangeiras, com destaque para o inglês.
Ora bem, no meu (humilde) papel de professor (do ensino secundário), atrevo-me a esclarecer que «comer», em sentido biológico, significa a capacidade de os seres vivos introduzirem alimento no seu organismo (ingerirem o alimento) a fim de o fazerem chegar todas as células do corpo, condição vital para que essas células realizem as suas funções. As células são as unidades estruturais e funcionais constituintes de cada ser vivo. Um ser vivo é, no mínimo, formado por uma (só) célula, mas há seres vivos complexos, como os seres humanos ou as árvores que são constituídos por dezenas de biliões (milhões de milhões) de células.
Uma célula, pequenina como normalmente é, pode comparar-se a uma casa, ou uma fábrica ou mesmo uma cidade: precisa de materiais, particularmente alimento (matéria orgânica), de energia (que pode obter da matéria orgânica alimentar) e de «ferramentas» com que desenvolve as suas actividades, as quais, nalguns casos, ocorrem em compartimentos específicos ou em certas regiões da célula. Essas actividades vão desde a digestão de alimento, construção de estruturas (intra e extracelulares), produção de materiais de defesa (anticorpos, por exemplo) a processos e sistemas de recolha e evacuação de lixo celular. Ao conjunto de actividades (que são reacções químicas) de uma célula chama-se metabolismo e, em condições fisiológicas, tais actividades têm que estar sempre a ocorrer, tal como certas funções imprescindíveis numa casa de habitação saudável, num hospital digno do nome ou numa cidade aprazível.
Entre as ferramentas das células têm particular importância as enzimas. As enzimas são vulgarmente proteínas (longas cadeias de aminoácidos, basicamente). Às vezes as enzimas são constituídas por mais do que uma dessas cadeias, não raro, associadas a outras substâncias que não são aminoácidos, o que também acontece com proteínas não enzimáticas - por exemplo, a proteína que transporta oxigénio no nosso corpo é constituída por quatro cadeias de aminoácidos, cada uma delas contendo um grupo químico que contém ferro. Há vários tipos de proteínas com várias funções (os anticorpos que produzimos contra micróbios ou as suas toxinas também são proteínas) e algumas delas têm a função de facilitar a ocorrência de reacções químicas que, na sua ausência, demorariam muito tempo a acontecer (eventualmente anos!) ou não aconteciam. Estas últimas desempenham nas células um papel similar ao dos catalisadores inorgânicos da química comum, ou seja, são catalisadores biológicos que modulam a velocidade de imensas reacções ou cadeias de reacções, dentro ou fora do espaço celular. Os catalisadores biológicos chamam-se enzimas.
Se forçássemos uma comparação, uma enzima específica poderia ser tomada como uma chave eléctrica com a qual rapidamente aparafusamos ou desaparafusamos objectos numa casa. Com a vantagem de a chave não se gastar em cada operação. As enzimas também não se consomem nas reacções que catalisam, funcionando enquanto não se destruírem. E há enzimas específicas para cada reacção bioquímica ou para cada tipo de reacções bioquímicas.
Percebemos, portanto, a importância das enzimas para a actividade celular. Sem enzimas não há metabolismo, ou seja, não há funções celulares. Mas, se no caso da chave eléctrica de parafusos, até poderíamos dizer que «come» energia (que pagaremos), no caso das enzimas, o seu custo de funcionamento limita-se ao «preço» de «fabrico» da própria enzima, realizado na célula, quer dizer: uma enzima é uma molécula mais ou menos complexa que catalisa uma reacção química, em condições determinadas (de temperatura e de grau de acidez, por exemplo), e que actua enquanto estiver funcional, sem «comer» o que quer que seja. No caso da enzima que «come» plástico o que ela faz é digerir polímeros nos seus elementos (monómeros) constituintes, tal como uma enzima digestiva que actua no nosso tubo digestivo (por exemplo a amilase) digere uma macromolécula (o amido) em moléculas mais simples (por exemplo maltose). Mas digerir é simplificar moléculas alimentares - um trabalho de enzimas digestivas, e comer é próprio de seres vivos, constituídos por células no interior das quais são produzidas e funcionam enzimas aos milhares, digestivas e outras.
As enzimas deviam ser objecto de estudo (mais) cuidado na escolaridade básica e secundária. Mas, no 9º ano, em ciências naturais, fala-se nelas ao de leve, quando se aborda a digestão, fazendo de conta que os alunos ficam a perceber e gostam do que deviam (mas estão impedidos de) aprender. No 10º ano, para os que têm biologia, por alturas da digestão, que é abordada nos micróbios e em todos os tipos de animais!, lá se volta a referir as enzimas, outra vez de modo vago e genérico, evitando «o estudo pormenorizado da morfofisiologia dos sistemas digestivos» (página 80 do programa). Só se estes alunos optarem pela disciplina de biologia do 12º ano de escolaridade é que vão estudar a actividade enzimática, podendo, finalmente!, compreender aquilo que estudaram praticamente sem fundamentação no 9º e no 10º ano.
Não admira, pois, que os divulgadores de notícias do domínio científico cometam imprecisões como as que me levaram a escrever este texto (que provavelmente ninguém lerá até ao fim).
José Batista d’Ascenção
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