terça-feira, 31 de julho de 2018

Arbitrariedade e inadequação de certos tópicos exigidos na classificação de provas de exame nacional

Um exemplo concreto e infeliz do exame de biologia e geologia (2018, 2ª fase)

O caso que se segue justifica a paciência da análise porque me parece tristemente demonstrativo da necessidade de que alguma coisa se modifique para melhor na elaboração das provas de exame.


No grupo II da prova há três gráficos de barras que mostram o crescimento de três espécies de algas microscópicas de água doce em meios experimentais idênticos com quantidades decrescentes de fosfato, incluindo a concentração zero (ausência de fosfato). As barras têm alturas correspondentes à medida da turbidez da água do meio («densidade ótica») em que as algas crescem. Os valores de densidade ótica são proporcionais à concentração de algas (quantidade de células por unidade de volume do meio). Acontece que as escalas de medida da densidade ótica são diferentes nos três gráficos (de duas em duas centésimas no primeiro, à esquerda, com um certo espaçamento; de décima em décima no segundo, ao centro, com um espaçamento cerca de duas vezes superior ao do primeiro; e de centésima em centésima no terceiro gráfico, à direita, mas com espaçamento igual ao do segundo). Verifica-se também que quando a concentração de fosfato é zero a densidade ótica nos três casos é sensivelmente a mesma, apesar de a altura das barras ser diferente, o que significa que a concentração de cada uma das algas em cada meio é quase igual, ao fim do mesmo tempo. Se tomarmos a concentração mínima de fosfato testada acima de zero, a alga do primeiro gráfico atinge uma concentração três vezes superior à do terceiro (embora a barra respectiva seja menos alta), e a alga do segundo gráfico também é mais concentrada do que a do terceiro. Se tomarmos a segunda concentração menor (acima de zero), novamente verificamos que a alga do terceiro gráfico é a que atinge menor densidade ótica, o que significa que se reproduz menos do que as outras duas.
Porém, se olharmos os gráficos em geral, vemos que nas algas correspondentes aos gráficos um e dois é mais notório o decréscimo de desenvolvimento para menores concentrações de fosfato, enquanto a alga correspondente ao terceiro gráfico tem desenvolvimento mais uniforme, com barras de altura igual para os quatro valores mais altos da concentração de fosfato e as restantes duas, para as concentrações mais baixas de fosfato (uma delas correspondendo à ausência daquele químico), também são iguais entre si, apenas uma centésima abaixo do valor das outras. Há portanto, um só (e ligeiro) desnível entre o conjunto dos seis ensaios. 
Em consequência, a alga do terceiro gráfico mostra claramente uma menor sensibilidade à variação das concentrações de fosfato, na gama testada (a altura das barras é mais igual, por assim dizer).
Surge, no final a pergunta: «Num lago em que se encontram as três espécies de algas, registou-se um decréscimo acentuado da concentração de fosfato. Explique de que modo uma das espécies em estudo pode contribuir, com maior eficácia, para a manutenção do ecossistema. Na sua resposta, tenha em consideração os resultados do estudo e identifique a espécie em causa.»
Esta pergunta pretende que os alunos identifiquem a espécie do terceiro gráfico como a mais importante para a manutenção do ecossistema, porque ela é a menos afectada pela variação da concentração de fosfato (primeiro tópico da resposta). Na segunda parte (segundo tópico) os alunos deveriam referir que as algas realizam a fotossíntese produzindo a matéria orgânica (alimento) necessária para os seres consumidores das cadeias alimentares (aqueles que não realizam a fotossíntese: herbívoros, que comem algas ou plantas, carnívoros que comem herbívoros e/ou carnívoros, etc.).
O problema é este: com os dados disponíveis, o primeiro tópico exigido é questionável (o segundo é legítimo). Porquê? – Porque a produção primária de matéria orgânica (biomassa), através da fotossíntese, é a condição essencial para que os consumidores disponham de alimento. Sem alimento não há cadeias alimentares. Ora, para quaisquer concentrações de fosfato testadas diferentes de zero, as algas do primeiro e do segundo gráfico produzem sempre maior quantidade de biomassa (alimento) do que a alga do terceiro gráfico, embora sejam (muito) mais sensíveis à variação das concentrações de fosfato.
A exigência do primeiro tópico seria legítima se houvesse alguma indicação no texto introdutório sobre eventuais especificidades ou preferências alimentares dos herbívoros, ou se interviessem factores decorrentes de competição entre as algas ou outros quaisquer fenómenos (fisico-químicos e/ou biológicos) que justificassem a escolha pretendida segundo condições específicas previamente apresentadas.
Na ausência total de qualquer indicação nesse sentido, a exigência daquele primeiro tópico da resposta é ilegítima, mesmo havendo alunos que acertam intuitivamente.
Não compreendo por que há-de ser assim.

José Batista d’Ascenção

PS: Esperei pela especificação dos critérios de avaliação da versão de trabalho, que só ontem consegui espreitar (uma vez que não estou a classificar), para escrever este texto. Mas o IAVE nunca corrigiu um erro, que eu saiba, e assim se mantém. Entretanto coloquei a questão a alguém muito competente e habilitado, que concordou comigo.
Mas sei que é esforço inútil. E as férias apagarão forçosamente tudo.

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