sexta-feira, 8 de maio de 2020

Ouvir mal e ser professor

Muito limitadora do relacionamento familiar, profissional e social, a surdez afecta a personalidade de quem a sofre, quase sempre de modo introspectivo e triste. É ingrato ouvir mal uma pergunta e ter que responder: - o quê? Ser obrigado a pedir que repitam essa pergunta uma ou mais vezes, é frustante. E se, apesar disso, a compreensão não for possível, a frustração facilmente se transforma num sentimento doloroso. Mesmo as pessoas próximas, familiares e amigos chegados, nem sempre têm aquela sensibilidade que facilita: falar frontalmente, articular e pronunciar bem as palavras, numa dicção com movimentos labiais que ajudam à compreensão, ou colocar-se em posição favorável, no caso de a dificuldade de audição incidir ou ser mais pronunciada num dos lados. E sempre que a pessoa que interpela um surdo perde a paciência e desiste, alheia ao penoso insucesso de quem se esforçou por entender, à sensação infeliz da vítima, soma-se, não raro, a humilhação da sua inferioridade.
Na sala de aula, ouvir bem é fundamental. Distinguir os pequenos ruídos de fundo, localizá-los automaticamente, diferenciar muito bem o timbre da voz de cada aluno são importantes factores de orientação de uma aula. Nada pior do que, ouvido um som, mais ou menos indistintamente, não destrinçar a sua fonte, desconhecer se foi emitido num lado ou noutro da sala ou mesmo fora dela, no recreio ou no corredor, porque acentua a dúvida sobre se se justifica ou não fazer algum aviso de silêncio, de modo oportuno, incisivo e dirigido. Situações assim causam perturbação no professor e dão azo a conversas em surdina que propagam a desatenção dos alunos. Momentos pouco animadores são também aqueles em que um ou outro aluno, intencionalmente ou não, responde a alguma questão baixando o tom de voz e mal mexendo os lábios, dificultando ao mestre a compreensão clara do que disse.
Um dia, à mesa do café, comentando estes problemas com o meu amigo Luís G., falou-me ele da acuidade da sua audição, referindo que, certa vez, quando mexia num qualquer instrumento, lhe escapou um parafuso minúsculo que foi cair numa zona de sombra, e que ele seguiu tão distintamente pelo som do seu saltitar no chão, que o localizou de modo imediato e preciso, mais pelo tacto do que pela vista. Confessei-lhe então a minha inveja dessa sua condição.
Do mesmo modo que fui adiando e demorei muito a usar óculos, também tardei a aceitar uma prótese auditiva. Mas, se no primeiro caso era apenas a relutância de me adaptar à permanência de um apêndice artificial aposto na cara, que ainda agora, ao fim de tantos anos, sinto como um estorvo, relativamente ao aparelho auditivo havia a incongruência entre sentir-me deficiente auditivo e assumir isso sem problemas - pensava eu - e como que ter vergonha de pendurar mais um artefacto na orelha. Só que teve de ser. E o apetrecho ajuda, descontados os factores de adaptação, mas não resolve.
Com o passar dos anos e o envelhecimento dos professores, nenhum deles vê melhorar a visão ou a audição ou a sua condição física em geral. A média de idades do corpo docente do ensino básico e secundário começa a ser preocupante. O estado de saúde da generalidade dos professores degrada-se inexoravelmente. Além disso, o ensino de crianças e jovens por pessoas que elas associam invariavelmente à idade dos seus avós não é de si estimulante. Digo-o claramente, salvaguardando que é um erro e um logro pensar que todos os professores devem ser jovens e terem uma “mentalidade” (mais) próxima da dos alunos. Ensinar e educar exige muito e a experiência e o saber de quem mais viveu são uma riqueza que não pode ser desperdiçada. Por amor às crianças e aos jovens. E por amor aos mais velhos.
De modos que, apesar de verem e ouvirem menos bem, coxeando mais ou menos, desde que suportassem as mazelas, tivessem sãos os neurónios, soubessem ensinar e quisessem, não haveria ética nem direito nem vantagem em colocar professores na prateleira.
De resto, como o exercício da profissão se degradou acentuadamente ao longo de décadas, depois da conquista da democracia no país, o que diminui o número de (bons) candidatos à docência, os professores mais velhos são necessários também por (possível) carência de substitutos.

José Batista d’Ascenção

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